Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida. [Capítulo 5 - Dos Braços De 2000 Mil Anos: Considerações Finais]
[Atenção! Este texto é parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2020 para minha graduação em História pela UERJ. Para conferir o resto acesse os links disponíveis no fim da página]
Após as análises do capítulo anterior, podemos traçar quatro temas principais que permeiam a Tropicália: 1) a crítica social: presente em Viramundo; Coragem Para Suportar; Miserere Nobis; Mamãe Coragem; São São Paulo e Tropicália. 2) a crítica política: presente em Parque Indústrial; Glória; Enquanto Seu Lobo Não Vem e Divino Maravilhoso. 3) a reflexão sobre a vida urbana; presente em Alegria, Alegria; Panis et Circenses; Lindonéia e Baby. 4) a modernidade experimental e/ou a atualização de antigas canções; presente em Domingo no Parque; Coração Materno; Geléia Geral; Três Caravelas; Bat Macumba; Hino do Senhor do Bonfim; A Minha Menina; 2001; Ela Falava Nisso Todo Dia / Bat Macumba / Frevo Rasgado e Chega de Saudade. Como proposto no título, este trabalho investiga a Tropicália sobre a ótica de um projeto de modernidade brasileiro interrompido. Busquei, antes de tudo, qualificar os critérios de ‘modernidade’ e ‘brasilidade’ para prosseguir com uma leitura histórica dos eventos que levaram à construção deste movimento. Por fim, uma análise das músicas e como esses conceitos se mobilizaram. A importância desse elemento resulta num discurso oculto sobre o subdesenvolvimento, presente menos nas letras do que nos arranjos. Por esta razão, visamos dedicar todo o quarto capítulo para uma análise atenta desse duplo discurso presente nas músicas.
Se o nacional-popular mobilizava esse debate em um dos primeiros discos produzidos pelo CPC (Canção do subdesenvolvido — Carlos Lyra, 1962), a canção de protesto focou na resistência política contra a ditadura. Mas o subdesenvolvimento não desaparece; muito pelo contrário, ele se aprofunda. Os arranjos de Rogério Duprat são especialmente ricos no que se refere a um enfrentamento prático da questão. Já a identidade nacional, esta tem sido uma questão recorrente em outros trabalhos que realizam análises excelentes, porém conclusões insatisfatórias. Pedro Duarte argumenta que na obra tropicalista “não há síntese por vir do tempo histórico, há uma atuação presente dele através de suas inúmeras tensões passadas e futuras” (1). As reflexões sobre nacionalismo e os argumentos apresentados por Darcy Ribeiro nos mostram o contrário: é precisamente na falta de uma síntese que reside a peculiaridade brasileira; a ninguendade, o potencial ainda por se realizar. Esta é a síntese do Brasil que a Tropicália nos apresenta.
Muito já se escreveu sobre as relações entre “arcaico e moderno” nas obras tropicalistas; suas contendas com a esquerda universitária; suas distinções em relação ao nacional-popular e o imaginário nacional que emana de suas músicas. No entanto, a despeito da qualidade e importância destas contribuições, pouco se tem avançado para além destas questões. A insuficiência destas leituras reside na ausência de análises sobre: 1) as continuidades que a Tropicália estabeleceu a partir do nacional-popular; 2) As condições materiais em que se produziram essas obras. A falta de atenção nestes dois itens deixa sem explicação uma série de questões. Não se contempla a dimensão política, presente no discurso tropicalista nos mesmos termos do nacional-popular; posicionando a Tropicália no que seriam os termos da contracultura. Ignoram-se, em maior ou menor grau, as críticas políticas de Capinam e também de Tom Zé — ambos egressos do CPC baiano. Isto se devem, em parte, a tendências políticas que inevitavelmente influenciam as análises (como notou Marcos Napolitano sobre Celso Favaretto e Heloisa Buarque de Hollanda), mas também à falta de um aprofundamento nas questões técnicas que envolvem a produção fonográfica. Por fim, também se observa a antropofagia apenas como um conceito etéreo que justifica abstratamente algumas contradições; e não como uma teoria que dava sentido à prática tropicalista. Via de regra, as análises sobre não atentam para o fato que a Tropicália — enquanto uma técnica da qual a MPB poderia se apropriar para sobreviver a dita “2º Revolução Industrial” — dialogava, antes de tudo, com a própria classe artística. Faltam interpretações mais profundas do discurso presente nos arranjos de Duprat e a necessidade que este impôs a um desenvolvimento tecnológico autônomo, introduzido pelos Mutantes (em especial por Claudio Baptista).
A ausência destas questões coloca, em última instância, a análise sobre as ideias dos artistas e não sobre as obras que construíram. Como diz Renato Ortiz, no prefácio do livro “Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura” de Márcia Tosta Dias:
“O narcisismo midiático vem acrescentar a esta interpretação ingênua, herdada do século XIX, uma série de problemas. Como o artista é o ponto de partida do ‘star-system’ a explicação se encerra na sua figura ou no testemunho e reflexões que ele e os jornalistas fazem de sua produção” (2).
Ciente de que este trabalho não seguiu à risca as recomendações de Ortiz para afastar-se das impressões pessoais dos artistas, busquei fora do corolário típico dos analistas e críticos, algo que, não só explique a Tropicália à luz das questões latentes da economia política brasileira; não só aprofunde a noção de modernidade presente nas músicas tropicalistas; mas que também sirva como uma luz a questões fundamentais para a produção musical dos dias de hoje.
Redimido artisticamente por David Byrne, Tom Zé nunca encontrou na academia a mesma redenção. Suas análises retroativas do que foi a Tropicália são muito mais profundas, porém largamente ignoradas, em comparação com as memórias pessoais de Gil e Caetano. Não que estas não devam ser consideradas. Mas foi Tom Zé quem sempre enfatizou que a grande diferença entre Tropicália e nacional-popular não deriva imediatamente das questões forma-conteúdo; mas antes na capacidade tecnológica brasileira para mediar a concepção e produção cultural. Diz Ortiz:
“A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz fazem parte de um campo de organização social, cultural e econômica, no qual a criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade difícil, negociada, mediada pela técnica e pelas leis de mercado” (3).
Ainda que partindo das análises de um artista, as declarações de Tom Zé nos oferecem uma saída do personalismo e uma entrada para as questões que visamos tratar neste trabalho. A importância desta questão, creio eu, justifica a relevância da Tropicália após meio século. Seria difícil precisar quantos artistas, que seriam eles próprios grandes nomes da música popular brasileira, foram influenciados direta ou indiretamente pelos tropicalistas. Secos e Molhados (1973), Acabou Chorare (1972) e Alucinação (1976) — para citar apenas 3 — são álbuns que seguem e expandem algumas das ideias propostas pela Tropicália. Não obstante, são alvos eles mesmos de investigações quanto à sua contribuição para a cultura brasileira.
Mesmo artistas previamente estabelecidos mostraram uma maior abertura para alguns dos elementos mobilizados pelos tropicalistas. A partir do disco África/Brasil (1976), Jorge Ben adotou a guitarra como instrumento principal. Até mesmo Chico Buarque, que havia se sentido excluído no final dos anos 1960, contou com os arranjos de Rogério Duprat para o disco Construção (1971). A canção titular é, na humilde opinião deste que vos escreve, não só o maior trabalho de Chico e Duprat; como a melhor canção da história deste país. Há uma tensão que emana da orquestra e do batuque; a letra hipnótica, que contempla a tragédia da classe trabalhadora do ponto de vista individual e coletivo — é um verdadeiro magnum opus. A influência manifesta por outros artistas, demonstra que foi interessante para a indústria fonográfica abrir seus cofres para as ideias tropicalistas. Isso nos leva a outra questão largamente ignorada em outras análises: a aproximação dos tropicalistas com os meios de comunicação em massa não foi uma capitulação, como diziam os críticos da esquerda à época; nem uma visão profética dos caminhos que a modernidade iria tomar; como fizeram parecer os críticos posteriores. Visei mostrar ao longo deste trabalho que, antes de mais nada, não era uma escolha e sim uma imposição. Com o fechamento dos CPCs a classe artística estava limitada às bolhas universitárias ou às regras do mercado. Diante desta posição de desvantagem, os tropicalistas ainda conseguiram fazer algumas exigências e tirar da indústria fonográfica o direito de fazer uma arte de vanguarda diante das massas. Essa arte demandava uma tecnologia cuja propriedade dependia dos investimentos de capital da indústria fonográfica. Esse foi o preço pago pelos tropicalistas para não folclorizar seu subdesenvolvimento.
Esta é a única grande distinção prática entre Tropicália e a canção de protesto. Ambas precisaram submeter-se ao mercado; mas apenas os tropicalistas fizeram disso uma oportunidade para um último sopro de ousadia que aquela modernidade gestada desde a década de 1910 — que passou por cabeças geniais como Lima Barreto, Oswald de Andrade, Álvaro Vieira Pinto e João Gilberto — poderia oferecer. De resto, é importante notar que as músicas tropicalistas buscaram, tanto em forma quanto em conteúdo, representar também o que era nacional e popular. Os mesmos ventos que sopravam o nacional-popular sopravam a Tropicália; com a grande diferença que sua força havia diminuído após 1964. Nesse sentido, a Tropicália é uma jangada que não se movia mais pelo vento; mas pela inércia. A modernidade que soprara suas velas havia sido interrompida pela repressão da ditadura; ainda assim, 4 anos depois, suas ideias se manifestavam, se realizavam e chegavam ao seu destino. Naturalmente, a força dessas ideias também se dissipou com o tempo. Conforme a indústria cultural foi, progressiva e sorrateiramente, transformando-se na indústria da diversão, lucra-se menos com reflexões sobre o Brasil e o mundo em que se vive, e mais com maneiras de divertir o povo para longe destas questões. Reconheço que uma crítica categórica como essa requer uma pesquisa própria, pois por si só pode ser confundida com críticas reacionárias e saudosistas. Logo de cara pode-se contestar se a indústria fonográfica é mesmo este deserto de ideias e representações nacionais e populares. Decerto há exemplos que provam o oposto, no entanto, sua escassez no cenário atual (especialmente em contraste com outras décadas) faz destes exemplos exceções que provavelmente confirmam a regra.
Por fim, gostaria de abrir uma última e inevitável questão: porque não se produz música hoje, com o mesmo entusiasmo e a mesma infusão de ideias como nos tempos da Tropicália? Vejamos, a despeito da nossa situação política e econômica, hoje gozamos de tecnologia acessível e liberdade política para produzir; o que não se pode dizer daqueles tempos. Hoje, podemos combinar o avanço tecnológico e a experimentação estética propostos pelos tropicalistas com a organização cultural e as motivações políticas dos CPCs. A UNE segue hoje, mesmo que sem o financiamento dos anos pré-1964, em pleno funcionamento. Festas, chopadas, formaturas, todas ocorrem livremente (ao menos antes da pandemia), sempre embaladas pelo que de mais novo se produz na indústria fonográfica. A crítica segue, como destacou Safatle no primeiro capítulo, como um tabu onde quem ousa levantar questões corre o risco de ser acusado de elitista. Busquei também desarmar essa leitura, mostrando que a equação entre cultura popular e arte de vanguarda não é insolucionável. Se a questão principal fosse esta, o objeto de pesquisa poderia tanto ser a Tropicália quanto Cartola; ou pode alguém acusar o lendário compositor carioca de ser elitista?
Nas rodas de rap e de samba do Rio de Janeiro, a cultura popular vai muito bem, obrigado; mas paradoxalmente esta não se realiza com o devido apoio do movimento estudantil, muito menos nos marcos da indústria cultural. Portanto, não é nenhum absurdo, dado nosso passado e nosso presente no mérito, questionar, cobrar e agir diante de uma evidente queda de qualidade na música popular brasileira produzida pela indústria fonográfica. Acredito que o papel do movimento estudantil é retomar as melhores práticas dos tempos de CPC com uma devida atualização de conteúdo (claro, o contexto de 2021 diferente de 1964) e tecnológica, que permita a experimentação formal que não se realizou nos anos 1960. O que nos leva para as questões materiais, também muito mais favoráveis do que 60 anos atrás: a China segue, dia após dia, produzindo equipamentos de ponta a preços abaixo do mercado. Ainda que o dólar seja um problema, o ciclo de valorização da moeda na década passada trouxe equipamentos de qualidade aos nossos portos. Ainda que estes apresentem alguma defasagem, boa parte dos processos atuais de gravação dependem mais de software do que de hardware. Nesse sentido, a pirataria é uma grande aliada aos produtores independentes, especialmente na periferia capitalista. Concluindo: não há razões de ordem econômica e política que impeça a recriação dos Centros Populares de Cultura da UNE. Mediante este processo, poderemos ver uma série de artistas que encontraram espaço para produzir e desenvolver seus talentos, ao mesmo tempo, em que refletem com outros colegas sobre o estado da arte e a “arte do Estado”; a política e o futuro nacional. O influxo natural de uma classe artística armada de consciência crítica pode representar um ponto de virada na indigência intelectual que é a atual indústria fonográfica. Falta apenas uma tomada de consciência crítica da classe artística e da classe universitária quanto à sua relação com a indústria cultural. Seguirão sendo apologistas do capital, implorando por um lugarzinho ao sol? Ou tomarão coragem para explodir o telhado, permitindo que todos se iluminem? Espero que, com as reflexões oferecidas sobre a Tropicália, possa contribuir para estas reflexões que julgo fundamentais para o futuro não só da música popular, mas da cultura brasileira como um potencial ainda por se realizar.
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Links para os outros capítulos:
[Introdução]
[Capítulo 1: Colocando o pingo nos ismos]
[Capítulo 2: Vandrés e Vanguardas: O Estado da MPB (1930–1967)]
[Capítulo 3: Violência, Viola, Violeiro: O Surgimento Da Tropicália]
[Capítulo 4: A Rota do Ano Luz: Análise das Músicas]
Notas:
- DUARTE op.cit. p. 17
- ORTIZ, Renato. Prefácio. In. DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura — 2º ed. — São Paulo : Boitempo, 2008 p. 12
- ORTIZ, Idem.