Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida. [Capítulo 4 - A Rota do Ano Luz: Análise das Músicas]

André Luis Carneiro
46 min readFeb 26, 2023

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[Atenção! Este texto é parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2020 para minha graduação em História pela UERJ. Para conferir o resto acesse os links disponíveis no fim da página]

Vimos até agora como a Tropicália se enquadrou evolutivo da modernidade brasileira. Vimos também quais elementos dessa modernidade chamaram a atenção dos tropicalistas e como foram mobilizados na concepção teórica-estética que os artistas propunham. Resta-nos agora analisar como todo esse contexto e essas ideias se concretizaram na obra tropicalista. As provocações que motivam estas análises podem ser condensadas em uma frase: mais do que um gênero, a Tropicália foi uma técnica. Berço de grandes provocações, foi no programa de Antônio Abujamra que Júlio Medaglia refletiu sobre essa questão. O maestro argumenta que na Belle Époque, a tecnologia dependia do seu potencial artístico para ser apreciada. Como exemplo, cita que o 1º voo de Santos Dumont foi como um happening, uma performance pública planejada para chamar a atenção de todos (1). Em contrapartida, atualmente nos chama mais atenção a técnica na qual ouvimos a música do que a música em si (2). Já Tom Zé baliza sua análise entre o que chama de “1º e 2º Revolução Industrial”. A 1ª, segundo o artista, desenvolveu a força da máquina e dos músculos; a 2º desenvolveria o sistema nervoso, a inteligência e a sensibilidade (3). Não é claro se o foco de sua análise é o de uma revolução mundial ou nacional. Sendo nacional, poderíamos colocar a 1º Revolução Industrial como decorrência da Revolução de 1930, e a 2º, como decorrência dos resultados políticos da década de 1960 (i.e. ditadura). Sob o que chama de “sombra da ditadura” os tropicalistas estavam “cedendo por debaixo dos panos” informações que a censura queria proibir, mas não conseguia apontar nas letras. Após as reflexões dos últimos capítulos percebemos que, na linha do tempo do depoimento de Medaglia, a Tropicália se insere precisamente na intersecção histórica entre a predominância da arte e a predominância da técnica. Portanto, a Tropicália, mais do que um gênero musical, é uma técnica. Mas uma técnica de quê? Ou, para quê? É o que nos responde Tom Zé: uma técnica para adaptar a arte brasileira às sensibilidades desenvolvidas pela “2º Revolução Industrial”. Fosse nacional ou mundial, a “2º Revolução” ao qual o cantor se refere estava em curso e se manifestava em diferentes meios artísticos, e em diferentes países. No Brasil, essa Revolução enfrentava questões inerentes à dependência econômica, o imperialismo e o subdesenvolvimento. Aderir, não só à guitarra, mas à bateria, às sonoridades eletrônicas e aos meios de comunicação — e ainda assim manter a originalidade brasileira — só seria possível com algumas mediações. A antropofagia, aplicada na prática pelos tropicalistas, respondia boa parte destas questões. Os tropicalistas estão para Lenin assim como a antropofagia de Oswald de Andrade está para o marxismo de Marx e Engels. Essa frase soa insana, mas é apenas a constatação de que os artistas conseguiram transformar em prática as ideias sintetizadas por um autor, anos antes. Armados destas ideias, os tropicalistas desenvolveram as técnicas que fariam da música popular brasileira uma força capaz de avançar pela modernidade com as próprias pernas. No contexto de uma “2º Revolução Industrial brasileira”, ainda há mais uma dimensão técnica para a Tropicália. A censura, como diz Tom Zé, “botava a mão e não vinha nada”. Em contraste com as músicas de protesto, a canção tropicalista não diz apenas com palavras, mas principalmente com música. A conexão de símbolos tradicionais com símbolos modernos, a aproximação do provinciano com o universal, e o desenvolvimento autônomo de intervenções tecnológicas na música — na Tropicália, forma é conteúdo.

Dito isto, este capítulo analisará letras e arranjos de uma seleção de 24 músicas lançadas entre 1967 e 1969; período ao qual, entendo, a manifestação destas técnicas tropicalistas eram preocupações ativas dos artistas na hora de realizar seu trabalho. A seleção destas canções obedeceu dois critérios: o primeiro, cronológico e o segundo, estético. Visei demonstrar, num primeiro momento, a evolução das ideias na obra de Gil e Caetano em seus primeiros discos. No segundo momento, o disco-manifesto Tropicália ou Panis et circensis. Este disco é, não apenas, a condensação destas ideias, mas a sua realização técnica. Nele todas as possibilidades dispostas à época foram apreciadas e aproveitadas pelos tropicalistas. Por fim, algumas obras lançadas após o disco, mostrando como os artistas que aderiram à Tropicália manifestaram essas técnicas em suas carreiras. É claro que muitos destes elementos foram manifestos musicalmente por estes artistas após 1969. Da mesma forma que outros artistas surgiram na esteira das inovações introduzidas pela Tropicália. Veremos mais sobre isso nas conclusões deste trabalho. Por hora, resta dizer que entre 1967 e 1969, muitas outras músicas também manifestaram as técnicas tropicalistas; entretanto, ficaram de fora para não estender desnecessariamente a leitura. Em suma: a seleção desses 24 fonogramas almeja sintetizar as principais ideias e manifestações da Tropicália, enquanto comentarista do seu tempo, e enquanto técnica proposta para a “retomada da linha evolutiva da música popular brasileira”. Também é preciso dizer de antemão que não possuo treinamento formal em música. Isto significa dizer que meu conhecimento se limita àquele do amador. Por isso, faço o melhor para expressar minhas análises, mobilizando o limitado vocabulário musical que possuo. Por fim, a sugestão é que a leitura deste capítulo seja acompanhada da audição das músicas. Aqui está um link para a playlist no Youtube e no Spotify.

Viramundo: Gilberto Gil e José Carlos Capinam

Letra: O primeiro verso é uma ilustração da errática vida urbana brasileira, vivendo em um mundo virado em rondas de maravilhas — a eterna busca brasileira pela modernidade que nos aflige desde 1822, criando efeitos deletérios na malha social, especialmente contra a classe trabalhadora. As tentativas de escapar das “cadeias da intriga”, aludem à vida errática e os percalços lançados pela classe dominante contra o pleno desenvolvimento do povo brasileiro. Ainda assim persiste a vontade de “ter toda a vida”, viver o máximo possível, ante a ideia de entregar-se à morte por alguma causa. Já o segundo verso, localizando o personagem no sertão, mostra haver um objetivo mais profundo: virar o mundo virado para então desfrutar do melhor que a vida tem para oferecer. Na primeira passagem, a estrofe “mas ainda viro este mundo / em festa, trabalho e pão” parece apontar para uma simples vontade de descansar. Agora o verso mostra que existe algo impedindo esse descanso: o virador deste mundo, astuto, mau e ladrão. Aqui toma forma uma sombra da burguesia, responsável pelo mundo virado. A promessa de que “virado será o mundo / e viramundo verão” remete, de forma muito resumida, à teleologia marxista que entende que a revolução é inevitável. Na perspectiva nacional-popular, é uma letra bastante avançada — para a Tropicália, era apenas o começo. A certidão com que o personagem promete essa virada de mundo retorna agora para o desejo de descanso não mais como um desejo, mas um lema que remete ao clássico bolchevique: “paz, pão e terra”. Sendo a paz o equivalente da festa, a terra, o equivalente do trabalho e o pão é o pão mesmo.

Arranjo: A harmonia de Viramundo é relativamente simples para os padrões de Gilberto Gil. O arranjo, não só da música como do disco, converge na direção do que já era conhecido na música popular brasileira desde que o nacional-popular havia se estabelecido. Porém, há algumas novidades introduzidas, como a velocidade com que Gil toca seu violão e outros pequenos detalhes ao longo do disco (ex: os metais da música Louvação (1967)).

Alegria, Alegria: Caetano Veloso

Letra: A letra de Alegria, Alegria, assim como Domingo no Parque, explora uma composição extremamente visual. Assemelha-se a um programa de TV, que perpassa por diversas imagens e temas de forma rápida e quase desconexa. Como disse Celso Favaretto:

“A marchinha pop Alegria, Alegria denota uma sensibilidade moderna, à flor da pele, fruto da vivência urbana de jovens imersos no mundo fragmentário de notícias, espetáculos, televisão e propaganda (…) numa linguagem caleidoscópica” (4).

Já Heloísa Buarque de Hollanda apresenta uma leitura peculiar:

“Recusando o discurso populista, desconfiando dos projetos de tomada do poder, valorizando a ocupação dos canais de massa, a construção literária das letras, a “técnica”, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a crítica de comportamento, o Tropicalismo é a expressão de uma crise. Ao contrário do discurso das esquerdas, para ele “não há proposta, nem promessa, nem proveta, nem procela” (5).

Parafraseando Roberto Schwarz: a ânsia da autora em comentar temas quentes da sociologia dos anos 1970 faz com que, por vezes, sua análise incorra em “ideias fora do lugar”. O esforço da autora em encaixar as teorias do populismo sua crítica política nas interpretações que efetua não alcançam resultados satisfatórios. Hollanda fala em populismo como se fosse o projeto monolítico, sem nuances ou distinções entre as figuras a que se refere. Ora, que populismo a Tropicália se opõe? O de Leonel Brizola ou o de Adhemar de Barros? O de Miguel Arraes ou de Carlos Lacerda? Por fim, o que há de desconfiança em Alegria, Alegria, ou nas músicas tropicalistas como um todo? O que quer dizer a autora com “não há propostas”; além de citar a contracapa de Barra 69, escrita por Caetano já após sua prisão? Alegria, Alegria é exatamente o oposto, histórica e filosoficamente, do que ela diz. A Tropicália, em si, era uma proposta — como poderiam eles mesmos ser avesso a isso? No que tange a canção, Alegria, Alegria é precisamente a adesão entusiasmada do personagem às novidades e possibilidades que a modernidade lhe apresenta.

Para não dizer que não falei das flores, a autora acerta quanto à “ocupação dos meios de comunicação” implícitos na música. O personagem da canção se vê diante de diversos símbolos da modernidade que emergem de todas as partes do mundo: as bombas que caem sobre o Vietnã; as guerrilhas de Cuba; os foguetes de Cabo Kennedy; a estrela do cinema italiano e francês. Além de fotos, nomes, os olhos cheios de cores; dentes, pernas, bandeiras, livros, fuzis, caras de presidentes, amores vãos: “quem lê tanta notícia?”; se pergunta o personagem. “O sol nas bancas de revista” parece se referir tanto ao tabloide que circulava em 1967, quanto aos outros sóis, no caso, as estrelas, as celebridades da indústria cultural. O “sol” como metáfora para a indústria cultural retorna em outras canções. Porém, tanta informação, tanto brilho, pode alegrar como encher o público de preguiça. A essa altura o personagem ainda não se decidiu quanto a isso. É, de certo modo, um comentário sobre como a indústria cultural não pede permissão para mostrar nada a ninguém. A própria TV é citada na canção, em um verso que remete à reflexão de Caetano sobre uma eventual adesão. É um metacomentário sutil sobre o estado da arte, tal como os bossa-novistas faziam. Após ser exposto a tanta coisa, mesmo sem saber muito bem o porquê, o personagem reflete sobre “cantar na televisão”. “O sol das bancas de revista”, que antes dava “alegria e preguiça” agora “é tão bonito”. O personagem se decidiu quanto aos meios de comunicação: ele vai os aderir, afinal: “porque não?”.

Arranjo: O arranjo, como dito no capítulo anterior, é bastante direto no sentido de unir o rock “n” roll com a marchinha de carnaval.

Coragem Pra Suportar: Gilberto Gil

Letra: Este já é o primeiro disco de Gil subscrito na estética tropicalista. Apesar de mostrar inovações em Louvação (1967), os arranjos ficaram por conta de Dory Caymmi cujo excelente trabalho é inevitavelmente distinto do que seriam os arranjos de Rogério Duprat no disco de 1968. Coragem para Suportar é um excelente exemplo sobre como a temática do sertão (presente também em Viramundo) não era estrangeira à Tropicália; desarmando algumas das críticas sobre uma suposta alienação política tropicalista. É uma letra bastante objetiva: o narrador comenta que o sertanejo não tem nada senão seu trabalho e sua coragem. Suas ações limitam-se à plantar, colher e suportar. E como em Carcará, a música comenta a alternativa da migração. A música de Gil é até menos violenta quanto ao que fica pra trás. Enquanto a música de João do Vale fala explicitamente em morte, Gil opta por comentar o que o retirante sertanejo deixa para trás: nada — para viver ou para dar.

Arranjo: Quanto ao arranjo, vemos uma mudança radical em relação ao disco anterior. O saem as rabecas e entram a guitarra e o baixo para acompanhar o violão e a flauta. O andamento e a harmonia da música são marcados por uma guitarra. A linha de baixo, como dito anteriormente, é diretamente inspirada em Taxman. Duprat insere barulhos que parecem ser brinquedos de cachorro. O Nirvana usou ruídos parecidos na música Drain You (1991), 23 anos depois. De forma geral, é um arranjo simples, ao menos para os padrões de hoje. No entanto, como vimos no capítulo anterior, é possível que o arranjo tenha sido algo tão inovador que não se percebeu que esta canção trata sobre a mesma miséria que tratavam as canções de protesto e o nacional-popular.

Domingo no Parque: Gilberto Gil e Os Mutantes

Letra: A letra de Domingo no Parque é, de certo modo, o samba-canção atualizado. Tal como em Lágrimas, há uma decepção amorosa como tema. E como em Coração Materno, o drama evolui para a tragédia violentamente: um duplo homicídio. A história conta um simples triângulo amoroso. Entretanto, sua atualização reside na linguagem utilizada para contar a história. Se o samba-canção é estruturado similarmente aos romances literários, Domingo no Parque emprega uma estrutura cinematográfica. Décio Pignatari classificava esta música como eisenstenianas (6). Há uma rápida introdução dos personagens e suas características, por meio da justaposição de cortes entre José e João. A letra emprega cenas em movimento (Juliana girando / oi girando / Oi, na roda gigante / oi girando), closes (Olha a faca!) e outras técnicas de cinema que garantem dinâmica e movimento numa mídia estritamente sonora.

Arranjo: Este arranjo, em certa medida, é uma demonstração prévia do que seria o alcance da Tropicália enquanto uma técnica antropofágica. Orquestra, berimbau, guitarras, baixo, violão e música eletrônica: tudo, de forma coesa e coerente, em uma única canção lançada há mais de 50 anos. O tom cinematográfico da letra foi naturalmente traduzido em música nas linhas de orquestra escritas por Rogério Duprat. A influência do cinema permeia toda a obra de Duprat. O berimbau acompanha o violão de Gil. Baixo e guitarra executam o acompanhamento melódico e Os Mutantes fazem a segunda voz. Os ruídos, sons de parque e crianças brincando, foram executados por meio de um aparelho eletrônico construído por Claudio Baptista. Anos depois, em 1993, Kurt Cobain iria comentar em entrevista para a MTV Brasil sobre Os Mutantes e o fato de que eles “faziam os próprios efeitos de guitarra” (7). Mais do que isso, a intervenção de Cláudio Baptista na evolução tecnológica da Tropicália e dos Mutantes é impressionante e merecia uma investigação própria. Domingo no parque, não apenas recusa “folclorizar seu subdesenvolvimento”, como reveste seu folclore do melhor que o desenvolvimento tecnológico e a modernidade poderia oferecer para a música brasileira naquele momento. Dentre as harmonias e modulações, muitos detalhes, destaca-se o toque de capoeira da Angola que guia toda a canção. Domingo no parque realiza a mistura deste ritmo de origem africano — mas brasileiro por excelência! — com as guitarras e o rock internacional. Se nos lembramos da origem negra, tanto do rock quanto do blues, Gil, Duprat e os Mutantes promovem o reencontro estético de duas correntes diaspóricas desenvolvidas na modernidade do século XX. A África promovia sua própria modernidade cultural, e no campo da música nenhuma figura simboliza isso melhor do que Fela Kuti. Mas entre aqueles, cujos destinos foram forçados na direção da América, caminhos distintos pareciam ter levado a cultura desses povos em direções opostas. No Brasil, via de regra, os escravos não eram convertidos. Isto fez com que, mesmo sob condições desumanas, preservassem suas práticas religiosas, suas canções e seus ritmos. A grosso modo, as rodas de capoeira e de samba derivam diretamente das práticas culturais do negro brasileiro desde os tempos da colônia. Enquanto isso, nos EUA, os senhores de escravo convertiam e forçavam os negros à adesão ao cristianismo. A repressão aos batuques foi posta em lei por meio do Negro act de 1740. Uma vez livres, o negro estadunidense desenvolveu seu ritmo e sua música nas igrejas protestantes, cantando o gospel enquanto batiam palmas e dançavam. Neste contexto surge a Irmã Rosetta Tharpe, mencionada no capítulo anterior, e toda a sequência de eventos que levam à guitarra elétrica e ao rock “n” roll. Essa singela diferença explica, ao menos em parte, porque é tão mais fácil identificar elementos africanos na música brasileira do que na música estadunidense, mesmo aquela realizada pelos negros. Comparado à síncope do samba, o blues parece até uma valsa. Mas há nele pequenos fragmentos do ritmo que os negros preservaram desde sua terra. Domingo no Parque promove a reconciliação entre essas diferenças em seu arranjo (8).

Tropicália: Caetano Veloso

Letra: Tropicália, assim como Alegria, Alegria, é uma letra “câmera-na-mão”, como dizia Augusto de Campos (9). Olhando para os “chapadões” da Chapada dos Veadeiros, o personagem vê aviões e caminhões em direção a Brasília. A mudança da capital brasileira foi comentada por Frantz Fanon:

“A cidade morta do Rio de Janeiro era um insulto ao povo brasileiro. Mas infelizmente, Brasília é apenas uma nova capital, tão monstruosa quanto a primeira. A única vantagem desta realização é que, hoje, existe uma estrada pelo mato até lá” (Tradução nossa) (10).

A crítica que Fanon faz ao Rio de Janeiro insere-se em uma análise sobre os grandes centros urbanos e seu papel no desarranjo social que aflige a periferia capitalista. Guilherme Granato percebe algo similar em Tropicália, ao que chama de “sentido desagregador”:

“Os jargões, clichês e imagens míticas do Brasil formam uma situação contraditória e desarticulada, fora do tempo e do espaço” A aflição, o suspense, a tensão que a Tropicália de Veloso nos passa é, de certa forma, uma “alegoria sensorial” que nos transmite parte do desespero existencial de assimilar o universo ao redor quando se vive na periferia capitalista” (11).

A canção nos apresenta retratos daquele país bizarro, onde crianças morrem de mão estendida na porta de monumentos modernos que se encontram em ruas antigas, estreitas e tortas. Era um país que dava dois passos para trás a cada passo para frente. Aquele país bizarro tinha uma nova capital ainda cheirando a tinta, um “monumento de papel crepom e prata”. No entanto, esta encontrava-se cheia de militares ocupando os palácios. Cláudio Coelho fez uma leitura categórica sobre o sentido político da canção:

“Quando na Tropicália a “mão direita” segura o poder político, com a ditadura militar por exemplo, é enfatizada a ação racionalizadora, que vê a sociedade como um “jardim” a ser cuidado para que reine o desenvolvimento com segurança (“eterna primavera”). Mas, esta ordem tem um preço: a repressão (…) Quando é o “pulso esquerdo” quem orienta o poder político, no governo João Goulart por exemplo, a auto reivindicada identificação com as classes populares (…) não leva a uma defesa concreta dos seus interesses e à superação do arcaísmo presente na sociedade brasileira” (12).

Por um tempo acreditei que a canção tinha seu “corpo” totalmente inserido nas contradições da esquerda. Sua mão direita carrega a rosa, símbolo da social-democracia, da coligação PTB/PSD, abençoada pelo PCB, que capitaneava a “eterna primavera” do desenvolvimentismo desde os anos de Getúlio Vargas. Os urubus deste jardim não deixam muita margem para especulação: trata-se da repressão militar que soube aguardar o seu momento para dar o bote. Enquanto isso, a mão esquerda representa aquelas vozes dissidentes na esquerda que não acreditavam na aliança “democrático-burguesa” e entendiam a necessidade da deflagração de uma ruptura revolucionária. Seria neste caso uma referência à guerrilha. No entanto, a rosa e a social-democracia nunca fizeram parte do arcabouço simbólico e teórico do PTB. Somente com a Carta de Lisboa e a fundação do PDT em 1979, que estes elementos são assumidos pelos correligionários de Leonel Brizola. Deste modo, concedo que a interpretação de Coelho parece mais apropriada.

O personagem cita o coração que “balança ao samba de tamborim”. Caetano faz uma virada na música, do comentário político para, mais uma vez, realizar um metacomentário musical; tal como fazia a Bossa Nova. E sua deferência ao gênero surge na citação dos “acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes”. É uma referência à fusão entre bom gosto e popularidade que a Bossa Nova realizou tão bem. Seu sucesso fez com que seus acordes dissonantes soassem pelos milhares de alto-falantes dos rádios e fosse vista pelos olhos grandes das câmeras de televisão. Programas como O Fino da Bossa traziam a MPB para as massas; algo que Caetano comenta em seguida. O verso parece uma programação semanal dos musicais que ocupavam as grades dos canais de TV. Domingo seria o dia da Bossa; segunda, a fossa romântica do samba-canção que ainda sobrevivia em cantoras como Maysa; e terça-feira, a roça e sua música caipira. Não encontrei registros da programação semanal dos canais de TV que comprove essa sequência. Todavia, é mais um momento em que a Tropicália comenta o estado da música popular brasileira. Ao final, o personagem manda tudo para o inferno, citando a Jovem Guarda, mais especificamente a música Quero que vá tudo pro inferno (1965) de Roberto Carlos. Nos refrões, vivas para diferentes elementos da cultura brasileira.

Arranjo: Sendo a música que, de certa forma, batiza toda a proposta estética; Tropicália é de fato um excelente exemplo do que é a música tropicalista. Assim como Domingo no Parque, é uma música que explora e relaciona profundamente aquilo que estava ao alcance da fome antropofágica naquele momento. No arranjo de Júlio Medaglia encontramos, sobretudo, um confronto entre a música erudita e o batuque popular. O trombone, que desde os tempos de Pixinguinha encontra-se na interseção dos dois gêneros musicais, aqui também medeia os polos sonoros, marcando ao mesmo tempo, o ritmo e o tom da música. A cacofonia e a música aleatória, elementos teorizados pelos membros do Música Nova, foram empregados pelo maestro Medaglia nos primeiros versos da música a fim de criar um ambiente selvagem. Esse batuque caótico vai progressivamente desaparecendo nos primeiros versos até que a orquestra toque sozinha no terceiro verso. Nos refrões, batuque e orquestra se misturam e saem do outro lado modificados. O que antes soava como calmaria nos instrumentos de orquestra, começa a ficar cada vez mais agressivo a cada refrão. A partir do quarto verso o batuque retorna e a tensão aumenta até que no último verso não há mais distinção entre orquestra e batuque. Essa complementação leva a música até o fim. Medaglia dedicou (e ainda dedica) boa parte de sua vida à aproximação entre música erudita e música popular. Na década de 1970, levou shows de música clássica para lugares como a fábrica da Brown Berri e para a marquise do Ceasa em São Paulo. Em 1985 levou a Orquestra Sinfônica Brasileira para o Morro da Mangueira, onde recebeu de Cartola a casaca da Comissão de Frente da Estação Primeira de Mangueira. Tendo em vista o foco do trabalho de sua vida, não seria absurda a hipótese de que o maestro escreveu o arranjo de Tropicália tendo em mente esta tensão estética. Neste sentido, também é possível interpretar um metacomentário sobre a longa disputa entre haute culture e folk culture; arte erudita e popular; música clássica e samba; que permeia as discussões culturais desde o século XIX. Outros embates são possíveis nessa interpretação: o colonizador e o colonizado; o imperialismo e o regionalismo;, etc. No que tange o foco tropicalista em debater a cultura brasileira, creio que estas não sejam hipóteses tão plausíveis.

Miserere Nobis (1968): Gilberto Gil e José Carlos Capinam

Letra: O verso em latim traduz-se para “Tenha misericórdia de nós/ Orai, orai por nós”. Seguido de duas linhas que parecem referir-se à eterna condição do Brasil enquanto “país do futuro” (13). “Já não somos como na chegada’ permite uma leitura sobre a chegada dos negros escravizados, misturados ao povo brasileiro, majoritariamente na classe proletária e lumpemproletária. No entanto, como esta é a única frase que permite diálogo com a imagem dos povos em diáspora, sua justificativa requer um aprofundamento sobre o debate entre os conceitos de raça e de classe. Outra interpretação, mais difundida, dá conta de uma referência ao êxodo interno. Nesse sentido, é de certa forma uma autorreferência: eis aqui um grupo de baianos que não chegaram de chapéu de couro, passivos, esperando as migalhas da sociedade desenvolvida do sudeste. Chegaram com concepções muito mais realistas de sertão, do nordeste, da seca, da miséria; mas também mais modernas no tocante à arte, à música, à poesia e à comunicação. A letra dá espaço para a interpretação individual elencar diversos personagens, tal qual uma adaptação de teatro; mas não é de forma alguma vaga quanto ao seu argumento coletivo. É notório que a música fala sobre um grupo, pois todos os sujeitos estão conjugados no plural. Portanto, em ambas as interpretações a canção canta a superação da passividade de um coletivo.

No meio da música o narrador passa do canto da sua realidade, da sua revolta, para o canto dos seus objetivos. Em ambas às vezes em que essa sessão da música é tocada, o narrador canta o que chamo de “comunismo tropicalista”: “na mesa da gente tem banana e feijão”, e “para todos, e sempre, a mesma cerveja” e “metade do pão”. Alimento e diversão, pão e circo, “Panis et circenses”. Esta utopia não é sobre dividir miséria, mas sobre dividir riqueza; portanto o linho para a toalha da mesa. Conforme o arranjo cresce e ganha contornos épicos, fica mais intensa a revolta cantada por Gil. O comunismo tropicalista encontra o mesmo destino que toda experiência socialista encontrou na História: a violência reacionária. A mesa posta durante as estrofes utópicas tem agora vinho derramado sobre si; o linho está manchado de sangue. As Reformas de Base de João Goulart, a utopia desenvolvimentista, essa mesa que vinha sendo posta há décadas foi virada e literalmente deposta. Nos últimos versos o Brasil se desconstrói em fuzis e canhões. Segundo Favaretto:

“A última estrofe é ambígua: trata da violência estabelecida que mantém o Brasil estagnado e afirma uma sublevação não institucionalizada. Simultaneamente, as palavras silabadas indicam a forma da censura política e, até mesmo, uma forma de violência que não reduplica a existente: uma ação política indireta, que, destacando-se da consciência burguesa, acentua a sua decomposição, por não ser possível simplesmente destruí-la” (14).

Parece-me uma desconstrução típica da poesia concreta que ilustra a escalada de eventos que levaram ao golpe de 1964. É curioso que, via de regra, as análises sobre esse disco não destacam essa influência concretista como o fazem em Bat Macumba.

Arranjo: Com a responsabilidade de abrir o disco-manifesto, Miserere Nobis realiza um bom trabalho. O arranjo de Duprat mais uma vez explora a extensão tropicalista que as condições materiais daquele momento permitiam. Logo de cara vemos uma mistura de órgão elétrico, campainha de bicicleta, viola caipira, caixa e chocalhos, e um baixo marcando a tônica. O órgão elétrico, em uma música com título derivado de uma oração em latim, soa apropriado para o tom de súplica que permeia a música. A música transita de uma marcha mais intensa, mais sombria, durante o canto de prece para uma mais cadenciada, mais solar, durante o canto de esperança. Conforme a canção avança, o arranjo vai progressivamente se acumulando, deixando o som mais complexo e sonoramente violento. O arranjo literalmente explode em tiros de canhão — referência à revolução e à Tchaikovsky e sua “Abertura Solene Para o Ano de 1812”; mas também à violência com que esses sonhos costumam ser enterrados.

Coração Materno (1968): Caetano Veloso (Vicente Celestino, 1950)

Letra: Sabe-se que o drama é o tom lírico do samba-canção; ao ponto do maestro Julio Medaglia constantemente adjetivar o gênero como “vale de lágrimas”. Porém, como vimos anteriormente, Coração Materno é uma canção que excede o drama e descamba para a violência. Esta é a terceira canção com mortes apenas na lista que selecionamos para este trabalho. Se contarmos os “corpos” são dois mortos em um domingo no parque, uma criança morta, em Tropicália; e agora uma “velhinha aos pés do altar”, totalizando quatro mortos. As outras canções mencionam, ora a miséria (Viramundo e Coragem para suportar), ora fuzis (Alegria, Alegria), ora miséria e fuzis (Miserere Nobis). Em suma: a violência é uma temática multifacetada e bastante presente, tanto na sociedade brasileira, quanto na obra tropicalista desde os primeiros lançamentos. Aqui ela assume a face do matricídio motivado por uma paixão exagerada.

Arranjo: A versão tropicalista para a canção de Vicente Celestino traz um arranjo um pouco mais lento, as cordas fazem notas mais longas e a voz de Caetano é notoriamente mais suave do que na versão original. Diz Favaretto:

“Caetano canta com distanciamento e reverência; um canto frio, despojado, fazendo algo parecido com a releitura oswaldiana dos primeiros cronistas do Brasil. Sem sentimentalismo ou morbidez, Caetano canta o que a letra diz literalmente, revelando-se, assim, o artificialismo do texto como algo ridículo, absolutamente kitsch.” (15).

Essa mudança na interpretação vocal pode ser entendida como um gesto de aproximação do canto sussurrado da Bossa Nova com o samba-canção. As duas versões também possuem métricas diferentes: a original foi gravada em um andamento 2/4 (16), mais próximo ao tango; enquanto a tropicalista, segundo transcrições (17), está no 4/4 mais típico da música pop. Ambos são métricas típicas da música moderna, no entanto, os tropicalistas naturalmente trazem a música para próximo de seu tempo. Outra novidade é que os sons de canhão ao fundo, concepção de música eletrônica derivada do grupo Música Nova, fazem a transição entre a primeira e a segunda faixa do disco. Essa prática de unir duas ou mais canções em um disco viria ser uma prática muito comum, especialmente nos discos de rock progressivo como The Wall (1979) do Pink Floyd.

Panis et circenses (1968): Gilberto Gil e Caetano Veloso

Letra: A letra de Panis et Circenses é relativamente simples: é uma crítica adolescente à indiferença passiva dos adultos de classe média. Diz Favareto:

“A música contrapõe o desejo de libertação ao ritual da sala de jantar. À afirmação do sonho, opõe-se a vida regida pela “ocupação” de “nascer e morrer”. A “canção iluminada de sol” projeta-se, surrealisticamente, para desarranjar o cotidiano” (18).

Apesar de ser uma composição de Gil e Caetano, a música soa apropriada para Os Mutantes, pois eles transmitem a perspectiva do adolescente que já abandonou a infância, mas não encontrou seu lugar entre os adultos. No documentário Tropicália (2012), imagens de arquivo exibem um preâmbulo dito por Paulo Gaudêncio para a canção durante uma exibição em programa de TV:

“O jovem quer ser adulto. O que o jovem não quer é ser como o adulto que ele tem diante dele…chato, quadrado, moralista; um adulto realmente nada atraente. Existe um tipo de adulto realmente detestável para um jovem razoavelmente saudável. Será que os jovens já disseram isso alguma vez na música? Já disseram centenas de vezes…uma delas gostaria de pedir aos Mutantes que executassem e que os adultos ouvissem…Panis et Circenses” (19).

O desejo do personagem em “cantar minha canção iluminada de sol”, é o mesmo desejo do personagem de Alegria, Alegria em “cantar na televisão”. Mas se naquela música, o personagem esconde esse desejo (“ela nem sabe, até pensei”), aqui ele conta para a família sendo ignorado. O personagem faz de tudo: canta, solta os panos, os tigres, os mastros; planta um jardim e até mesmo comete um assassinato em público — mas as pessoas da sala de jantar não se importam; “estão ocupadas em nascer e morrer”. Além da frustração geracional, mais um sinal de violência tropicalista: não perca as contas; o placar de corpos já conta com cinco — o personagem assassina o próprio amor em plena Avenida Central às 5 horas; e ninguém liga. Em uma sociedade massificada, a indiferença em relação ao outro não conhece distinção entre a casa e a rua.

Arranjo: Talvez a música mais famosa de todo o disco, Panis et circenses, é também a música mais próxima do rock que estava sendo produzida naquele momento no centro do capitalismo moderno. O arranjo, especialmente a pontuação rítmica, traz uma nítida influência de Being for the Benefit of Mr. Kite (1967) do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band; onde a marcação forte no contratempo, típico das bandas marciais, passa do bumbo tocado por Ringo Starr para o trombone regido por Rogério Duprat. No segundo verso, quatro trompetes somam-se ao arranjo, executando uma sequência de melodias que põe em prática alguns dos conceitos musicais que Duprat trazia desde os tempos do Música Nova, como a música serial. Esse recurso também aparece nos violinos de Tropicália, mas sem o mesmo destaque. As linhas de trompete e a acentuação tônica dão à música um tom bastante peculiar para uma harmonia extremamente simples. A bateria assume a batida pop e carrega a música adiante de forma mais agressiva até que toda a música desacelera como se alguém tivesse desligado o gravador da tomada. Como os tropicalistas fizeram isso? Ora, hoje existem plugins e softwares que executam essa função. Mas como fazer isto no Brasil em 1968? Simples: puxando o equipamento da tomada durante a gravação. A engenhosidade sonora dos tropicalistas não conhecia limites no subdesenvolvimento brasileiro.

Esta também é uma das primeiras músicas tropicalistas onde a bateria tem uma centralidade importante na dinâmica. A bateria é outro instrumento ao qual já nos acostumamos, mas cuja trajetória é relativamente recente. O próprio Caetano Veloso diz que, até o surgimento da Bossa Nova, enxergava na bateria apenas “um apanhado grotesco de instrumentos de percussão marcial ligados por porcas e parafusos” (20). Permita-me mais uma breve digressão: A humanidade viu as distâncias encurtarem desde a invenção do trem — também um apanhado grotesco de porcas, parafusos e ferros. A partir de então nos tornamos cada vez mais acostumados com a velocidade. Em pouco mais de 100 anos a humanidade passou do trem, para o carro, para o foguete. Foi inevitável que houvesse uma transformação na sensibilidade humana. E a bateria, especialmente como ela vinha sendo tocada a partir de meados da década de 1960, dava sustentação rítmica e velocidade para a agressividade que a guitarra elétrica introduziu na sensibilidade musical. Essa agressividade é a locomotiva que move músicas como Drive My Car (1965) dos Beatles, ou Se Você Pensa (1968) de Roberto Carlos. É o caso também de Panis et circenses onde, depois de alguns ruídos eletrônicos também desenvolvidos pelos tropicalistas, a música retorna com a mesma batida agressiva com a qual foi interrompida. Essa batida acelera progressivamente até que ouvem-se barulhos de pratos quebrando, talheres, copos — eis as pessoas na sala de jantar. Mais uma interpretação cênica transplantada para a música, interrompida mais uma vez pela cacofonia eletrônica.

Lindonéia (1968): Gilberto Gil e Caetano Veloso

Letra: Lindonéia foi diretamente inspirada pela obra de Rubens Gerchman, A Bela Lindonéia ou A Gioconda do Subúrbio (1966). Tal como a Mona Lisa, Lindonéia impõe alguns mistérios. Não sobre seu sorriso, pois não há um, mas sobre sua morte: sabemos que ela morreu instantaneamente, mas não sabemos de que. O olho esquerdo parece ferido por um soco, o que poderia indicar violência doméstica. Mas não misturemos a obra de Gerchman com a de Gil e Caetano. Algumas interpretações dão conta de uma descrição do vazio existencial de uma jovem suburbana. Essa interpretação deriva da leitura do cenário e da personagem e sua rotina: “cor parda”, “frutas na feira”, “solteira” (o que não elimina, mas diminui as chances de violência doméstica para a Lindonéia da música), “domingo” e “segunda-feira”, a “solidão”. Outras leituras enxergam um sutil comentário à perseguição policial da ditadura: “despedaçados”, “atropelados”, “cachorros mortos”, “policiais vigiando” e as “frutas sangrando”. Entre uma interpretação e outra, é possível que Lindonéia tenha fugido, sido sequestrada, presa ou morta. Fato é que a canção registra sua ausência: “na igreja, no andor”. Ela não pode mais ser encontrada “na frente do espelho”, apenas no avesso — “na fotografia”. Conclui-se que Lindonéia está morta, “do outro lado da vida”.

Arranjo: O arranjo desta música é bastante simples do ponto de vista instrumental. Uma orquestra e uma percussão, somados a uma bateria e um contrabaixo. Dois destaques apenas. Primeiro: quem canta esta faixa é Nara Leão. Ela, que fora a “musa da Bossa Nova”, que foi ponta de lança na aproximação com o samba de morro e a música nordestina (especialmente no show Opinião), que se opôs à Marcha Contra Guitarra Elétrica, agora “abençoava” a proposta tropicalista com sua participação. Naturalmente Nara emprestou um canto tipicamente bossa-novista; sussurrado e intimista, mas que transmite um pouco da timidez da figura de Lindonéia. O segundo destaque fica por uma transição rápida que Duprat escreveu no arranjo. No momento em que a letra canta “nas paradas de sucesso”, a batida pop que aparece em Panis et circenses retorna brevemente, fazendo um metacomentário. A transição entre gêneros musicais numa única canção seria largamente explorada por Duprat em seu disco solo.

Parque Industrial (1968): Tom Zé

Letra: Esta é a música onde se comenta a modernidade brasileira de forma mais explícita. Composta por Tom Zé, carrega em si a crítica política e social travestida de paródia e deboche; marcas típicas do artista. Logo no primeiro verso o personagem narra uma festa nacional, que roga, ora e agradece pela redenção. Entretanto, essa redenção não é a elevação espiritual e sim o avanço industrial. Esse verso se repete duas vezes na música e em resposta a ele Tom Zé descreve o outro lado dessa modernidade. “Garotas-propaganda”, “aeromoças”, “revistas moralistas”, “pecados” e “vedetes”. Comenta-se mais uma vez a violência, dessa vez como um gosto popular mediado pelas revistas, que são, na verdade “um banco de sangue encadernado”, que “não se espreme porque pode derramar”. Qual o lado bom? Ora, “o sorriso engarrafado” que “já vem pronto e tabelado; é somente requentar e usar”. A própria felicidade, comenta Tom Zé, é artificial. Destaco ainda que, inadvertidamente, Tom Zé relegou nesta música uma frase que se encaixa como uma luva atualmente. “Basta olhar na parede, minha alegria num instante se refaz”: à luz das redes sociais, esse verso nos remete justamente ao escapismo instantâneo que Facebooks e Instagrams da vida nos proporcionam. Tom Zé não é um profeta, mas um crítico perspicaz que percebeu e sintetizou em verso a fabricação da felicidade como pilar produtivo da indústria cultural. Naqueles tempos, os escritos de Herbert Marcuse circulavam entre a classe universitária e é possível que Tom Zé tenha captado algumas destas críticas. Pedro Duarte nota a presença do filósofo alemão em outras passagens desta música:

“Referia a crítica ao capitalismo não somente à economia, mas também ao excesso de repressão ao prazer individual (eros) exigido para a constituição social coletiva (civilização), Marcuse denunciava, ali, a castração do prazer, da fantasia, da arte e da sexualidade como o problema central da vida da época, tendo em vista escritos tardios de Sigmund Freud (…) Em Parque Industrial, Tom Zé ironizava a “a revista moralista” que traz os pecados da vedete” (21).

Por fim, uma ironia com esse avanço industrial baseado em multinacionais: é made in brazil!. Com um simples deboche, Tom Zé tematiza debates que datam do ISEB de uma forma sintética e precisa tal como o nacional-popular nunca conseguiu. Acredito que essa dimensão política da Tropicália se perdeu na difusão comercial do tropicalismo e não foi resgatada por nenhum analista posteriormente.

Arranjo: Dado o desenrolar do tempo, podemos afirmar o elenco de vozes que Parque Industrial renderia uma noite de ingressos esgotados em qualquer dos principais palcos do país: Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Tom Zé — à época, todos artistas jovens em ascensão. Além de, mais uma vez, inserir sons de aplausos que constroem a imagem de uma festa (tal como os Beatles fizeram no disco de 1967); a transição de gêneros musicais que Duprat explorou brevemente em Lindonéia é a base de Parque Industrial. Há basicamente três ritmos diferentes na canção: o primeiro, quando a letra roga pela redenção, soa como bandinhas de coreto. O segundo, que comenta a modernidade, soa como marchinha carnavalesca. E o terceiro, o refrão em inglês, é onde aparece mais uma vez a batida pop. A harmonia é simples, basicamente acordes maiores e menores, porém com algumas modulações; ora entre os versos, ora no meio deles. No VMB de 1999, Tom Zé, Rita Lee, Caetano Veloso e Gilberto Gil cantaram ao vivo a canção. O arranjo foi muito pouco atualizado; sendo acrescido apenas algumas percussões, como, pandeiros e tambores de Olodum. É um momento marcante e um testemunho da vitalidade do arranjo original.

Geleia Geral (1968): Gilberto Gil e Torquato Neto

Letra: Uma análise detalhada, que revire todas as referências de Geleia Geral ocuparia todo um capítulo. A colaboração entre Gil e Torquato Neto explora não só a velocidade sonora, como a velocidade com que as informações circulam na modernidade. De forma grosseira, a letra seria o que chamamos hoje de brainstorm; deixando correr livre o fluxo de símbolos e ideias que constituem a imagem do Brasil vista pelas lentes tropicalistas. Há referências a características gerais da nossa cordialidade (Hospitaleira amizade, brutalidade, jardim); referências à modernidade, como a TV, o Jornal do Brasil, o avião à jato e a FORMIPLAC. Há também símbolos da cultura brasileira moderna como o Canecão, Carolina de Chico Buarque; e da cultura tradicional como a carne seca, o santo barroco, a Mangueira e a Portel. Há até mesmo referências ao ufanismo dos anos 1930 (“O poeta desfolha a bandeira” (…) “Salve o lindo pendão dos teus olhos”).

Com a ajuda de Celso Favaretto (22), podemos listar citações diretas a outras músicas como “em mangueira onde o samba é mais puro” (Canção do Exílio de Gonçalves Dias); “a geleia geral brasileira” (Manifesto da Poesia Concreta de Décio Pignatari); “salve o lindo pendão dos teus olhos” (diretamente citando o Hino da Bandeira); “alegria é a prova dos nove” (do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade); “brutalidade jardim” (de Memórias Sentimentais de João Miramar, também de Oswald). Por fim, referem-se a si mesmos (“Tropicália — bananas ao vento”), reconhecendo-se como uma das relíquias do Brasil. São inúmeras as possibilidades de interpretações para os versos; por isso, retenho-me em assinalar apenas mais dois comentários. Primeiro, o refrão, unindo bumba meu boi com iê-iê-iê, é a síntese de toda a concepção idealizada por Gil, na pretensão de unir Srgt. Peppers… com a Banda de Pífanos de Caruaru. E por último, os versos “É a mesma dança na sala, no Canecão, na TV / E quem não dança não fala / Assiste a tudo e se cala / E não vê no meio da sala / As relíquias do Brasil”, identificam a dança como fala, presente na sala, no Canecão e na TV. Gil e Torquato argumentam que quem não dança apenas assiste calado e não percebe, diante de seus olhos, todas as possibilidades que uma visão aberta enxerga nas relíquias do Brasil. É mais um metacomentário sobre as posturas sectárias que permeavam a cultura engajada e mesmo a cultura comercial.

Arranjo: Este arranjo está muito próximo das propostas para Parque Industrial e Panis et circenses. A batida típica da música nordestina nos versos é conduzida pela guitarra que parece estar sendo tocada por Gil (não temos registros destes detalhes). A grande novidade da canção está no momento das “relíquias do Brasil”, em que Duprat faz um passeio por diversos toques, batuques e levadas que remetem inúmeras estéticas sonoras da música popular brasileira. É ao mesmo tempo, caótico, porém familiar; ao menos para os brasileiros.

Baby (1968): Caetano Veloso

Letra: A história desta canção já foi recontada diversas vezes por Caetano Veloso: a pedido de Maria Bethânia, cuja inspiração fora uma camisa escrita baby, i love you. A canção é mais uma série de símbolos e comportamentos típicos da vida urbana moderna: a piscina, a margarina, novamente a Carolina de Chico Buarque e o preço da gasolina. Os versos — “tomar um sorvete na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto, ouvir aquela canção do Roberto” — ganham uma cena muito específica quando lembramos do infortúnio encontro dos tropicalistas com Geraldo Vandré, ao qual na ocasião apresentaram justamente essa canção. Esses versos parecem direcionados a Vandré, em um apelo para que abandonasse a postura de resguardo estético e se abrisse às possibilidades. Como a história conta que a canção havia sido gravada no dia do encontro, é pouco provável que o verso seja de fato para Vandré. No entanto, o conselho, se não para o cantor paraibano, estende-se para outros artistas e o público: afinal, Caetano estava repassando o conselho que recebera da irmã, que identificou na Jovem Guarda a vitalidade pop que os tropicalistas queriam se apropriar.

Arranjo: Provando que a Tropicália não era uma estranha à Bossa Nova, nem vice-versa, o arranjo de Baby é um simples arranjo de Bossa Nova com violão, baixo, bateria, percussão e um belo arranjo de cordas escrito de maneira cinematográfica por Rogério Duprat. A harmonia da canção também é muito simples: dois acordes maiores nos versos e quatro acordes para o refrão. Diferente de Gil, Caetano nunca foi um virtuoso. Seu talento, como o de muitos outros compositores renomados, reside na simplicidade com que monta belas harmonias que sustentam belas letras — ponto forte do compositor. Ao final é possível ouvir Caetano realizando um contracanto à voz principal, citando Diana (1959) de Paul Anka.

Três Caravelas (Las Tres Carabelas) (1968): Augusto Algueró Jr. e Santiago Guardia Moreu, 1955

Letra: Las Tres Carabelas é uma canção composta em 1955 por Augusto Algueró Jr. e Santiago Guardia Moreu. Dentre as músicas presentes no disco-manifesto, é a que talvez menos renda debates. Via de regra, se entende esta escolha de repertório como um gesto em direção a uma maior associação do imaginário brasileiro com o resto da Pátria Grande. Acredito que uma maior aproximação com as manifestações musicais presentes no continente acabaria ocorrendo, não fosse o fim súbito que a Tropicália encontrou. Dentre outras, esta seria também uma das consequências naturais do pleno desenvolvimento da identidade nacional brasileira, segundo as análises de Darcy Ribeiro expostas no primeiro capítulo. Neste sentido, Três Carabelas é um sinal do que a Tropicália poderia estabelecer diálogos por toda a América Latina, não fosse a repressão do Estado e a interferência imperialista.

Arranjo: Este clássico da música latino-americana foi gravado de diversas formas: desde bandas mariachi até cantores românticos como Antonio Prieto. É preciso fazer uma confissão: meus conhecimentos sobre música latina resumem-se ao Buena Vista Social Club, de forma que não poderia diferenciar a rumba da sala nem que minha vida dependesse disso. Restando-me dizer que, dentre as diversas versões desta canção que encontrei disponíveis na internet, a de Rogério Duprat é bastante singular pelo uso dinâmico dos metais.

Enquanto seu lobo não vem (1968): Caetano Veloso

Letra: Esta é notória e sabidamente a letra que vai mais ao encontro da canção de protesto em todo o disco-manifesto. Há uma analogia entre a resistência à ditadura, as primeiras organizações de guerrilha e a Revolução Cubana (“uma cordilheira sobre o asfalto”). Há referência a Hélio Oiticica e sua escola de coração (“a Estação Primeira de Mangueira”). Mas, em geral, é uma letra “câmera na mão” como outras de Caetano. Pedro Duarte comenta, de forma perspicaz, que esta música soa como uma extensão natural do passeio de Alegria, Alegria; com a grave distinção de que entre 1967 e 1968 a repressão e a violência se agravaram radicalmente. Se antes o personagem dizia “eu vou, porque não”, agora ele mesmo percebe que não vai a lugar nenhum que não seja um esconderijo “debaixo da cama” (23). O último verso é bastante claro quanto à dinâmica do passeio que esta canção propõe. Diferente da canção de 1967, esta não propõe um passeio contemplativo e reflexivo; ela não propõe de fato um passeio e sim um protesto. Porém, motivado pelo medo, o personagem projeta que esse “passeio” se dará “debaixo das bombas, das bandeiras, debaixo das botas” podendo acabar “debaixo das rosas, do jardim, debaixo da lama”, tal como ocorreu com o estudante Edson Luís. Pedro Duarte entende que o personagem decide que, enquanto seu lobo não vem, é melhor se esconder “debaixo da cama”.

Há ainda algumas referências que certamente não estavam dadas na época de sua composição; mas que a luz da História enriquecem a experiência. Há alguns historiadores, como Antônio Barbosa, que argumentam que o suicídio de Vargas adiou em 10 anos o golpe militar. Apesar de não concordar totalmente com esta interpretação, é inegável que a derrota de Jango era, em muitos sentidos, a derrota de Vargas. Por tudo isso, a repetição do seu nome dá um fundo histórico para uma canção que comentava acontecimentos contemporâneos ao seu lançamento. A segunda referência deriva de um anacronismo (24). É sabido que o nome ‘Estados Unidos do Brasil’ era de fato o nome oficial da República. No entanto, à luz dos documentos que revelam o envolvimento direto dos presidentes, John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson na conspiração que derrubou Jango, a referência soa como um deboche à submissão do Brasil aos interesses dos Estados Unidos da América. Claro que, de certo modo, o nome era sim uma submissão de uma nação à outra — se Caetano aspirou fazer algum comentário neste sentido, certamente referia-se a uma submissão simbólica. Em todo caso, o compositor não teria como saber desses acontecimentos revelados quase 50 anos depois.

Arranjo: Assim como Baby, esta é uma música cuja aproximação com a Bossa Nova é notória pelo modo como se toca o violão. No entanto, uma audição atenta percebe que a instrumentária de Enquanto Seu Lobo Não Vem realiza uma aproximação entre o nacional-popular e as bandas marciais; ou seja, uma aproximação entre a estética sonora da esquerda e da direita. Para os que gostam de destacar a Tropicália pela sua composição de contrastes, este não parece ter despertado atenção em muitos trabalhos. O agogô, típico dos sambas de morro, e o violão-gago tornam a abertura da música bastante familiar. Porém, as flautas são logo substituídas por clarins. A voz de Gal subverte os versos de Dorival Caymmi (Dora, 1958) para fazer referência explícita à ditadura. O surdo marca o tempo, introduzindo mais um elemento do nacional-popular inspirado pelo samba de morro. Ao final da canção, um trompete responde aos versos com rápidas melodias: uma delas faz referência ao Hino da Internacional Comunista. Rufadas de caixa nos surgem nos lembrando do espectro militar que já havia se materializado no Brasil, e rondava a América Latina como um todo.

Mamãe, coragem (1968): Caetano Veloso e Torquato Neto

Letra: A letra desta música faz parte de uma carta que Torquato Neto escreveu para sua mãe quando partiu do Piauí para a Bahia. Sua simplicidade diz mais do que qualquer análise poderia ousar, restando apenas reforçar a dimensão reflexiva e aconselhadora da canção tropicalista. Como dito anteriormente, aqui Torquato recomenda à sua mãe que leia livros, pague as contas; em suma, siga a vida. Ele está partindo em busca de uma vida que lhe permita expressar os corações fora do peito e os beijos presos na garganta. Diferente do que vivemos hoje, a vida urbana da década de 1960 permitia que jovens do interior partissem em busca de uma “cidade que eu plantei pra mim”, onde a felicidade é brincar carnaval e as possibilidades “que não tem mais fim”. Do ponto de vista literário, talvez se trate de um clichê do filho que pródigo. Porém, do ponto de vista de uma representação da modernidade brasileira, revela algumas nuances interessantes. Vemos que, ao passo que persiste a desigualdade interna entre cidades e estados, o jovem que parte em busca do desenvolvimento não é mais um mero imigrante deslocado no tempo e no espaço; ele traz consigo referências culturais como “Alzira, morta virgem” e “O grande industrial”. De certa forma, mostra haver mais no ser humano do que apenas o lugar de onde ele vem; ou, como diz outra canção do mesmo disco: “Já não somos como na chegada, calados e magros, esperando o jantar”.

Arranjo: O clima particular de Mamãe, coragem, ao mesmo tempo, intimista, porém intenso, encontra similares na indústria cultural em músicas como ocean eyes (2016) da cantora Billie Elish, quase 50 anos depois. O arranjo é bastante simples; composto apenas de uma guitarra fazendo uma harmonia simples, percussão e alguns instrumentos de sopro como flauta, trompete e trombone. Um surdo, muito discreto, marca o tempo ao fundo em uma cadência próxima ao baião. Apesar de instrumentos de diferentes gêneros musicais estarem presentes, a canção não se encaixa em nenhum. Mais uma vez a genialidade tropicalista esbarra na ninguendade brasileira descrita por Darcy Ribeiro.

Bat Macumba (1968): Gilberto Gil e Caetano Veloso

Letra: A letra de Bat Macumba é, em suma, uma poesia concreta. É necessário vê-la por escrito para perceber que o desenho das linhas remete à bandeira do Brasil. Durante a sua desconstrução surgem novos significantes que, ora comentam tradições religiosas (“Bat macumba”), ora signos da modernidade (“Batman”).

Arranjo: O arranjo de Batmacumba é um apanhado de percussões, um violão e um baixo marcando a harmonia e um solo de viola caipira. Não parece ter uma estrutura fixa, já que a base é em cima de um único acorde, dando mais a sensação de um improviso. No VMB 1999 essa canção também foi apresentada; mas diferente de Parque Industrial, Bat Macumba passou por significativos acréscimos percussivos, de metais e tudo mais que pôde-se encaixar. Não se trata de uma fraqueza de um arranjo em relação ao outro: ambos continuam atuais, um por suas qualidades atemporais específicas; e o outro por ser uma obra aberta para novos improvisos.

Hino do Senhor do Bonfim (1968): Arthur de Sales / João Antônio Wanderley

Letra: Não há nenhuma alteração na letra em relação ao popular Hino baiano

Arranjo: De forma geral, a transição entre o ritmo de marcha para o de Bossa Nova, que ocorre no terceiro verso, é a única inovação substancial no arranjo. Há uma agressividade marcante na forma como a bateria executa algumas viradas, além dos floreios de flauta típicos dos arranjos de Duprat. Como esta música encerra ao disco, pareceu apropriado para os tropicalistas encerrar com a cacofonia de gritos e gemidos. As mesmas bombas que abrem a primeira música, encerram a última, dando à audição do disco uma sensação de retorno ao início.

A Minha Menina (1968): Os Mutantes e Jorge Ben

Letra: Rita Lee conta em sua autobiografia que a letra de A Minha Menina foi feita quase toda de improviso. Diz ela que bateu na porta de Jorge Ben e recepcionada por uma moça que viria a se tornar uma cantora muito famosa. Jorge então fez a música tendo esta cantora como inspiração (25). É uma simples canção de amor, mas que apresenta um equilíbrio elegante entre os gestos introspectivos da Bossa Nova e a grandiloquência do samba-canção.

Arranjo: O arranjo desta música é um clássico exemplo da perfeita união entre o violão e a instrumentária de rock. Em tempos de Jimi Hendrix, Gilberto Gil foi um dos que notaram que a forma particular com que Jorge Ben tocava seu violão fazia dele o músico que melhor transpunha aquela violência particular da guitarra para algo extremamente apropriado à música popular brasileira. Outros, como Morais Moreira, e o próprio Gilberto Gil, expandiriam ainda mais essas misturas técnicas. Mas na batida de Jorge Ben reside mais do que apenas a velocidade — como notou o historiador Luiz Antonio Simas, o toque de violão de Jorge Ben deriva de toques de santo da umbanda e do candomblé (26). Portanto, mesmo sem nunca ter passado para história com reflexões ou comentários sobre questões envolvendo a Tropicália, A Minha Menina mostra que Jorge Ben era um tropicalista por excelência.

Glória (1968): Tom Zé

Letra: É seguro afirmar que esta canção toca em temas mais profundos, no tocante à luta de classes e à crítica contra a burguesia brasileira, do que qualquer canção do nacional-popular ou da música de protesto já feita antes. A confiança com que escrevo essas palavras reside no fato de que não se conhece nenhuma outra canção da música popular brasileira que tenha criticado a burguesia em dois pontos tão nevrálgicos: sua tendência de acumular moeda estrangeira e seu pragmatismo político na hora de defender seus interesses. O primeiro verso faz uma crítica muito explícita sobre “a família e a tradição”; não enquanto tema, mas enquanto símbolo mobilizado em eventos como a ‘Marcha da família com Deus pela liberdade’, prenúncio do golpe de 1964. Essa instrumentalização hipócrita é denunciada por Tom Zé, quando a letra ilustra a preferência pela “casa alheia, ressalvando a discrição”. No segundo verso, o pragmatismo burguês, assentado no seu controle da superestrutura e também da infraestrutura da sociedade, faz com que as “boas ações, a causa justa e que é nobre, convive é com os milhões”; ou seja, que seus interesses de classe sejam sempre vistos como nobres e justificáveis. Nessa segunda passagem, as pessoas à quem o burguês ensinou — “com poucas palavras, e muitas ações” — pode não ser somente seus filhos. É possível a interpretação de uma crítica à canção de protestos e o nacional-popular, cujas palavras não foram suficientes frente às poucas ações do poder burguês. Ainda que não tenha sido concebida pelo autor, é uma leitura construída diante de uma leitura histórica dos eventos; e da qual podemos tirar uma dura lição, tão valiosa em 1968 quanto em 2021: símbolos por si só não sustentam o poder

Arranjo: Como em toda sua carreira, os arranjos das músicas de Tom Zé requerem muita atenção, pois o artista é bastante meticuloso em seu trabalho. De tal sorte que é necessário um vocabulário maior e mais articulado do que consigo mobilizar neste trabalho. Em todo caso é possível notar elementos típicos da música tropicalista. Para a produção de Grande Liquidação (1968), a Música Nova foi representada por Damiano Cozzella. A combinação de transições rítmicas, típicas dos vanguardistas, e as modulações que Tom Zé empregou por toda a sua carreira, faz com que Glória pareça, por vezes, duas canções em uma.

São São Paulo (1968): Tom Zé

Letra: Agora Tom Zé aponta seu canhão crítico para a classe média paulista. Esta canção é, acima de tudo, uma crônica da vida urbana na maior metrópole da América do Sul. Destacam-se, nos primeiros versos, os contrastes: a agressão cortês, a solidão aglomerada, as pessoas que “se amam com todo ódio, se odeiam com todo amor”. No segundo verso, o contraste é entre a alegria das prostitutas do centro da cidade com a repressão moralista das famílias religiosas. No terceiro verso há o contraste entre a natureza fabricada das decorações arquitetônicas (“crescem flores de concreto”) que acabam por esconder a verdadeira natureza (“céu aberto, ninguém vê”); e também entre a vida em outras cidades como Rio e Brasília e o cotidiano atribulado do cidadão paulista. No início deste último verso há uma sátira sobre como a indústria cultural fabricava paixões pela TV. Quantas adolescentes não se apaixonaram por Roberto Carlos, Chico Buarque ou mesmo Caetano Veloso, apenas pela exposição que estas figuras tinham? Por fim, há um último detalhe curioso. Claro que isto não estava dado quando Tom Zé escreveu a música, porém, hoje os versos “Santo Antônio foi demitido dos ministros de cupido / Armados da eletrônica…”, inevitavelmente nos faz pensar nos diversos aplicativos de relacionamento como Tinder e a centralidade que eles adquiriram na relação humana. Novamente, insisto que Tom Zé não é um profeta, mas um crítico cuja sensibilidade garante sobrevida a suas análises mesmo após o contexto em que ele as produz.

Arranjo: O arranjo desta música, de modo geral, está dentro do que a Tropicália experimentava naquela época. É importante ressaltar que esta canção não só concorreu como venceu o IV Festival da Música Popular Brasileira. Isto significa que ela esta estruturada numa forma típica dos festivais (forma comercial à qual nem as canções de protesto fugiam): versos melódicos e refrões potentes. Tom Zé apostou na popular levada de baião e realizou poucas modulações; tornando-a mais constante do que Parque Industrial ou Glória, por exemplo.

Divino Maravilhoso (1969): Gal Costa (Gilberto Gil/Caetano Veloso)

Letra: Esta é uma canção bastante emblemática, pois, tal como Enquanto seu lobo não vem, transmite a tensão constante da militância urbana em tempos de ditadura. Cláudio Coelho nota que:

“talvez seja a canção tropicalista que melhor tenha captado o imaginário de uma parte (…) dos militantes das organizações guerrilheiras: a dos que valorizavam a experiência urbana dos jovens de classe média; experiência que não encontrava ressonância na produção cultural da esquerda, às voltas com o “sertão” (27).

No estilo conselheiro das letras tropicalistas, é preciso estar atento e forte, ter olhos firmes e não temer a morte. Essa última estrofe, um encorajamento, nos faz pensar na famosa frase de Carlos Marighella: “Não tive tempo de ter medo.” Não poderia precisar se a frase veio ou não antes da música. Em todo caso, é um sintoma da radicalização que ocorria na sociedade no final da década de 1960. A letra ainda aponta que é preciso estar atento e forte: “ao refrão”, ao “palavrão”, à “palavra de ordem”, o “samba exaltação”. Basicamente, é preciso estar atento aos elementos culturais que circulavam na música popular brasileira naquele momento. Porém, no segundo verso, é preciso estar atento “às janelas no alto”, “ao pisar no asfalto” ou no “mangue”, “o sangue sobre o chão”. Estes são símbolos da violência, da repressão e da resistência à ditadura que progressivamente se radicalizavam naquele final de década. A distinção entre esses dois polos para os quais os tropicalistas chamam atenção está determinado na própria letra: o personagem recomenda “olhos firmes”, um olhar crítico, para “este sol” e “esta escuridão”. Aqui, novamente, o sol remete aos holofotes da indústria cultural. A escuridão, por sua vez, é a censura e a repressão estatal. Hoje sabemos que estes dois elementos, ditadura e indústria cultural, estão estreitamente conectados. A letra de Divino, Maravilhoso mostra que os tropicalistas intuíram esta conexão; se não como parte de um mesmo projeto político, como consequências dos rumos tomados pelo avanço da modernidade.

Arranjo: O arranjo de Divino, Maravilhoso traz toda a instrumentação típica do rock sobre a base do violão agressivo e veloz de Gilberto Gil. A voz de Gal mostra toda a sua força nessa música, especialmente no grito entre verso e refrão. Já eram tempos de Janis Joplin e sua voz rasgando os ouvidos das plateias estadunidenses. Por aqui essa violência se manifesta no grito de Gal, que segundo a própria cantora, foi capaz de sentar um homem que a vaiava alucinadamente durante o IV Festival de MPB (28). A canção ficou em 4º lugar no júri especial.

2001 (Dois mil e um) (1969): Rita Lee & Tom Zé

Letra e Arranjo: Esta música precisa ser analisada na totalidade. Dentre as canções selecionadas, o arranjo de 2001 é sem dúvida singular. Não apenas por sua cacofonia ou sua justaposição da música caipira com o rock; mas principalmente por sua história. Diz Tom Zé que escreveu a letra, mas não conseguiu dar-lhe música. Chegou a virar uma madrugada junto de Caetano, mas sem sucesso. Eis que a letra, de forma não esclarecida, chegou à Rita Lee que, inspirada pelo filme 2001: Uma odisseia no espaço, compôs a música. Segundo Tom Zé, Rita inspirou-se na valsa de Johann Strauss: uma música caipira interpretada por uma orquestra (29). A própria compositora define como “Jeca Tatu goes to Mars” (30). A música é trilha do filme de Stanley Kubrick, famoso também por suas cenas mirabolantes que beiram a psicodelia. Essa estética também foi captada pela sensibilidade de Rita, pois após a cacofonia do meio da canção, os gêneros musicais trocam de papéis e a estrutura da música se subverte, mostrando que, no fundo, não há diferença entre os gêneros musicais para além da forma como são tocados. Além dos Mutantes, Gilberto Gil toca a sanfona, Duprat rege a orquestra e Rita Lee toca o teremim, um instrumento eletrônico controlado sem contato físico. Além da instrumentária ultramoderna, há um notório afinamento da sensibilidade tropicalista diante do amplo cenário cultural.

Ele Falava Nisso Todo Dia / Bat Macumba / Frevo Rasgado: Rogério Duprat

Arranjo: A Banda Tropicalista do Duprat talvez seja o disco menos conhecido do “cânone” tropicalista. Lançado em 1968, é um apanhado de arranjos, covers e medleys de outras músicas; a maioria delas músicas já trabalhadas por Duprat. É o caso desta, onde o maestro promove uma releitura das canções tropicalistas. Dado o nome do disco, essa escolha de repertório é como uma Tropicália². Sendo o medley, por definição, a mistura de diferentes músicas em um só fonograma, é de se esperar algumas transições rítmicas ou de gênero musical. Porém, Rogério Duprat amplifica esta dinâmica, fazendo com que as mudanças ocorram a qualquer momento. Dado sua verne cinematográfica e a dinâmica heroica que emprestou para esta releitura, esta música, especialmente o trecho de Bat Macumba, é extremamente apropriada para algum tipo de super-herói brasileiro que apareça nas telas de cinema. Por fim, esta gravação, devido sua instrumentária e sua dinâmica, soa extremamente familiar com os cordões de carnaval dos dias de hoje. 53 anos separam A Banda Tropicalista do Duprat e a Orquestra Voadora, que desfila todos os anos no carnaval do Rio desde 2008. Entretanto, Duprat poderia por sua banda na rua, hoje que não soaria estranho à nossa sensibilidade musical moderna. Quando Capinam diz que “as formas livres que se apresentam hoje são mais caretas do que a forma em que a Tropicália expressou sua necessidade de libertação” (31); é a isto que ele se refere. A indústria cultural falhou em manter ou melhorar o padrão musical daqueles tempos. Hoje, originalidade não se compra, mas se encontra de graça pelas ruas do Brasil — que nunca deixaram de expressar sua genialidade musical.

Chega de Saudade (1968): Rogério Duprat (João Gilberto, 1958)

Arranjo: Esta música é, pura e simplesmente, uma provocação. Mediante a contenda entre a Tropicália e o nacional-popular, alimentada principalmente pela mídia, a decisão de Duprat para o arranjo de Chega de Saudade é uma resposta categórica. Antes da Bossa Nova se assustar com o sucesso da Jovem Guarda, e acusá-los de alienados, os próprios bossa-novistas foram alvos das mesmas acusações. Na verdade, até hoje resiste a essa impressão, calcada unicamente na origem de classe média de muitos compositores. Há também aqueles que creditam o sucesso da Bossa Nova ao reconhecimento internacional; apontando-a como “música para agradar o estrangeiro” — crítica à qual já expus minhas objeções. Para desarmar todas essas fronteiras de rótulo, Duprat passeia com o clássico de João Gilberto por diversos estilos de samba diferentes: começando com a Bossa Nova típica, o maestro passa pelo sambalanço, samba de breque, samba de gafieira e o samba enredo. Em nenhum deles perde-se a dimensão popular da música, muito pelo contrário, ela se amplifica. Por fim, após esta defesa da Bossa Nova, Duprat subverte todas as expectativas e encerra com uma levada pop, referenciando explicitamente a Jovem Guarda. A provocação de Rogério Duprat é para tudo e para todos; não contra, mas a favor de que se elimine qualquer barreira criativa imposta pela rotulagem comercial.

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[COMO CITAR: CARNEIRO, André Luis. Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida. 146 p. 2021. Monografia (Graduação em História) — Departamento de História. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2021.]

Links para os outros capítulos:
[Introdução]
[Capítulo 1: Colocando o pingo nos ismos]
[Capítulo 2: Vandrés e Vanguardas: O Estado da MPB (1930–1967)]
[Capítulo 3: Violência, Viola, Violeiro: O Surgimento Da Tropicália]
[Capítulo 5 — Dos Braços De 2000 Mil Anos: Considerações Finais]

Notas:

  1. Júlio Medaglia. Provocações. São Paulo : TV Cultura, 17/12/2000
  2. A partir dos anos 1980 iniciou-se uma corrida tecnológica que instalou uma “revolução permanente” no formato fonográfico; sendo hoje, o streaming, a novidade mais recente. Alguns tentaram ir na contramão desta tendência e a partir da década de 2010, começaram a comprar e vender os antigos discos de vinil. Em vão: o único efeito deste saudosismo foi o de fetichizar o vinil enquanto técnica “autêntica” e disparar o preço dos discos no mercado. À título de curiosidade, comprei um LP usado (Nirvana: MTV Unplugged in New York, 1994) por 2 reais em 2004. Hoje, o mesmo disco, nas mesmas condições, custa 300 reais.
  3. Tom Zé. Rita Lee — Ovelha Negra. Roberto de Oliveira (dir.) 2007 (71 min)
  4. FAVARETTO. op.cit. p. 20
  5. HOLLANDA. op.cit p. 55
  6. Augusto Campos. Explosão de Alegria: http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/report_explosao.php (Último acesso: 31/03/2021)
  7. Kurt Cobain. Loki — Arnaldo Baptista. Paulo Henrique Fontenelle (dir.). Rio de Janeiro : Canal Brasil, 2008 (120 min)
  8. Bryan McCann, buscando desconstruir a imagem elitista que a indústria cultural impregnou na Bossa Nova, argumenta que essa reaproximação diaspórica já havia ocorrido quando os bossa-novistas aproximaram o samba do blues (MCCANN, Bryan. Blues and Samba: another side of Bossa Nova history. In. Luso-Brazilian Review v. 44 n. 2 dez. 2007)
  9. Augusto Campos. Explosão de Alegria: http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/report_explosao.php (Último acesso: 31/03/2021)
  10. FANON, Frantz. The Wretched of the Earth. — 1º ed. — Londres: Penguin Classics, 2001 p. 150
  11. GRANATO op.cit. p. 108
  12. COELHO, Cláudio op.cit. p. 166
  13. Em 1941 o termo já era título da obra de Stefan Zweig, um judeu refugiado, sobre o Brasil, país que lhe deu abrigo.
  14. FAVARETTO. op.cit. p. 89
  15. FAVARETTO op.cit. p. 96
  16. Partitura de Coração Materno de Vicente Celestino. https://acervo.casadochoro.com.br/files/uploads/scores/score_14566.pdf
  17. No trabalho de Diogo Araujo da Silva houve um esforço em contactar a família de Rogério Duprat em busca da partitura de Coração Materno. No entanto, a busca não obteve sucesso e Diogo contou com a transcrição de Luiz Felipe Soares para realizar sua análise. SILVA, Diogo Araujo da. A canção “Coração materno” e o dadá no tropicalismo / Diogo Araujo da Silva ; orientador, Carlos Eduardo Schmidt Capela. Dissertação (mestrado) — Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2019. p. 129
  18. FAVARETTO. op.cit. p. 102
  19. Paulo Gaudêncio. Tropicália. Direção de Marcelo Machado. São Paulo: Imagem Filmes, 2012. 1 DVD (87 min.)
  20. VELOSO. op.cit. p.255
  21. DUARTE. op.cit. p. 69
  22. FAVARETO. op.cit. p. 109
  23. DUARTE. op.cit. p. 64
  24. “Viva a contribuição milionária de todos os erros”, diria Oswald de Andrade.
  25. LEE, Rita. op.cit p. 75
  26. Luiz Antonio Simas sobre o toque de violão de Jorge Ben: https://twitter.com/simas_luiz/status/1159762407130042368 (Último acesso: 04/04/2021)
  27. COELHO op.cit. p. 170
  28. Gal Costa. Tropicália. Direção de Marcelo Machado. São Paulo: Imagem Filmes, 2012. 1 DVD (87 min.)
  29. Tom Zé. In: Rita Lee — Ovelha Negra. Roberto de Oliveira (dir.) 2007 (71 min)
  30. LEE, Rita. op.cit p. 84
  31. José Carlos Capinam. In. Tropicália ou Panis et Circensis. O Som do Vinil. Rio de Janeiro. 2012. Programa de TV

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André Luis Carneiro
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Written by André Luis Carneiro

Historiador formado pela UERJ. Mestrando da UNIRIO. Comunismo, música e futebol. andreluis.carneiro130@gmail.com

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