Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida. [Introdução]
[Atenção! Este texto é parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2020 para minha graduação em História pela UERJ. Para conferir o resto acesse os links disponíveis no fim da página]
A cena musical brasileira nos anos de 1960 era tão prolífera que mesmo 50 anos depois ainda é alvo de debates. Claro que podemos fechar os olhos e apontar para praticamente qualquer década e encontraremos um cenário musical interessante no Brasil. O que faz dos anos 1960 uma década extraordinária em relação às outras é justamente a interseção dessa ideologia cultural em meio ao acirramento de ideologias políticas. A década de 1960 é também uma década de siglas; ISEB, UNE, CPC, IPES, UDN, PTB, PCB, etc. Todas essas agremiações preocupavam-se, ao seu modo, com uma questão: a modernidade brasileira. O processo de industrialização que havia começado a se desenvolver no final dos anos 1940 com o acordo entre Vargas e Roosevelt teve como consequência um crescimento considerável do Produto Interno Bruto, da classe operária, da vida urbana, dos bens de consumo, do comércio cultural e de outros elementos que tiveram uma influência inédita no cotidiano brasileiro. Esse desenvolvimento estimulou também uma maior concentração de renda, desigualdade social e ainda precisava conviver com as contradições da conjuntura histórica; isto é, latifúndios e monocultura de exportação. É evidente que a cultura brasileira seria sensível a essa transformação social. É curioso, no entanto, que conforme a sociedade brasileira crescia, se expandia, trocava as casas pelos apartamentos e se tornava cada vez mais massificada; a música abdicava de seu caráter expansivo, dramático e teatral em favor de um tom mais introspectivo. Com isso, o ‘vale de lágrimas’ dos boleros e samba-canções veiculados pela Rádio Nacional davam espaço para o violão-gago e a voz sussurrada de João Gilberto. O acirramento político naturalmente inundou o debate cultural e a partir da metade da década de 1960 parte da MPB passava a ser capitaneada por um sem-número de quadros militantes emergidos das universidades. Mesmo com todas as suas contradições e críticas que merecem ser colocadas, o movimento estudantil brasileiro foi suficientemente competente em erguer uma estrutura cultural paralela ao circuito comercial. As produções dos CPCs apresentaram para o mundo nomes como Nara Leão, Zé Keti, Carlos Lyra, João do Vale, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, José Carlos Capinam, etc. Note-se que não se trata de um mero inventário de nomes célebres, e sim de uma massa crítica que faria explodir todo o potencial político da música popular brasileira.
Com o golpe militar de 1.º de abril de 1964 inicia-se uma série de crises ideológicas no seio da esquerda brasileira e a MPB não escapou do processo. Fracassara o nacional-desenvolvimentismo e a aposta de João Goulart em reformas e conciliação de classes, assim como falhara a Revolução por etapas propostas pelo PCB. Na música, os artistas filiados a estética do “nacional-popular” — que não havia obtido êxito na construção da identidade nacional e da consciência de classe — conservavam-se em trincheiras na luta de resistência contra o regime. Por meio de produções dos CPCs, Maria Bethânia e Gilberto Gil partiram da Bahia para São Paulo quase como em um movimento de anunciação. Logo Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto e outros estariam presentes nos centros culturais do Brasil, renovando o ar abafado da cultura popular. Inadvertidamente, em meio a trincheiras culturais havia-se aberto espaço para uma última ofensiva do espírito de progresso e modernidade no campo da estética musical: a Tropicália. Muito se fala sobre o caráter multimídia dos tropicalistas; seja em sua relação direta com a obra de Hélio Oiticica e a Poesia Concreta, seja por sua relação indireta com Gláuber Rocha e José Celso Martinez. No entanto, é na aliança entre esses jovens baianos, influenciados pelas práticas culturais dos CPCs, com os músicos de formação clássica que compunham o movimento de vanguarda ‘Música Nova’ que nasce a estética sonora que mais de 50 anos depois ainda inspira trabalhos, pesquisas e toda sorte de investigações. Este projeto se insere nesse conjunto de debates, trazendo como questão central a imagem de modernidade brasileira oferecida pela obra tropicalista. Por meio de uma linguagem fragmentada, sincrética e razoavelmente contraditória, a Tropicália oferece um retrato dinâmico de um país fragmentado, sincrético e extremamente contraditório. Pedro Duarte em sua obra “Tropicália ou Panis et Circensis” afirma que na obra tropicalista não se encontra o símbolo definitivo da nação. “Em vez de reduzir a diversidade do país a uma identidade essencial, os tropicalistas exploravam a potência de nossa multiplicidade histórica” (1). Por um lado, Duarte está certo em afirmar que a riqueza da Tropicália reside na exploração estética de todas as nossas alternativas históricas. No entanto, discordo quanto à negação de um símbolo nacional. Se há uma invariável na cultura brasileira é justamente sua variabilidade. Esta é a identidade essencial da cultura brasileira que os tropicalistas afirmam; a diversidade popular. E este projeto busca justamente elucidar como modernidade e nacionalidade se manifestam de forma crítica na obra sonora dos tropicalista.
A primeira hipótese deste trabalho é que a Tropicália foi o destino final da ‘Linha Bossa Nova’. Quero dizer: com a Bossa Nova como primeira expressão musical brasileira moderna, uma série de obras foram realizadas refletindo esse processo de modernização em um imaginário nacional. Com o golpe de 1964 as alternativas musicais se reduzem virtualmente a MPB engajada (carente dos CPCs) e a Jovem Guarda (apoiada pelo mercado fonográfico). Eis que surgem os tropicalistas, ainda empurrados pelos ventos da modernização, e avançam onde os outros dois polos estagnaram. Aproveitando a visão crítica de um e a desenvoltura midiática de outro, sintetizam um imaginário social brasileiro que abraça suas contradições e retira delas as melhores alternativas para sua superação. A segunda hipótese entende que Tropicália não é um gênero musical, mas uma técnica que permite a renovação da música por meio de novidades tecnológicas e estéticas estrangeiras sem perder a genialidade que caracteriza a cultura brasileira. Apoiados na antropofagia, os tropicalistas propuseram-se a renovar as formas de comunicar suas críticas e também instrumentalizar politicamente os meios de comunicação em massa. Ao passo que falharam na segunda, obtiveram sucesso na primeira.
Porém, trabalhar com a análise de músicas enquanto fonte impõe alguns desafios. Theodor Adorno, por exemplo, chamava atenção para o excesso de tecnicismo. Diz o filósofo:
“Saber se o Sr. X toca o concerto em sol maior de Beethoven melhor que o Sr. Y, ou se a voz do jovem tenor é excessivamente trabalhada — têm pouco ou nada a ver com a substância e o sentido da música, mas compensação ajuda a sustentar o véu cultural, a ocupação do espírito degradado em cultura genérica, que impede a muitos de ver o que importaria mais.” (2)
Por outro lado, reter-se nas reflexões e declarações pessoais dos artistas, nas letras, ou mesmo no contexto social e político onde as obras foram produzidas, pode não dar a dimensão exata de como se manifestaram esteticamente algumas ideias propostas. Como veremos em breve, os tropicalistas disseram muito nos seus arranjos e na forma como compunham suas canções. Tendo em mente estas questões, este trabalho foi estruturado de forma que analisaremos em primeiro lugar as ideias, em seguida o contexto político e por último as músicas em sua dimensão técnica e estética.
No primeiro capítulo aferiremos com maior precisão alguns dos conceitos que norteiam a análise; são eles o nacionalismo, o modernismo, o populismo e o tropicalismo. Os dois primeiros buscam firmar os termos em que nacionalismo e modernidade são mobilizados na obra tropicalista, ao passo que os dois últimos justificam a exclusão de termos recorrentes nas diversas análises sobre a Tropicália. O segundo capítulo oferece uma narrativa da “linha evolutiva da música popular brasileira”, analisando a evolução das ideias, mas especialmente como os meios materiais de produção musical acompanharam as mudanças estéticas na forma da canção brasileira. O terceiro capítulo, seguindo a mesma linha de análise, se dedica à Tropicália em seu contexto; as críticas que enfrentou e os elementos de modernidade que buscaram mobilizar. É no quarto capítulo em que veremos uma análise mais detalhada das músicas tropicalistas e como os elementos da modernidade foram executados nestas obras. Por fim, nas conclusões trazemos uma breve passagem sobre a condição da indústria fonográfica após o fim da Tropicália, suas influências em outros artistas e algumas críticas sobre o atual estado da arte da música popular brasileira.
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[COMO CITAR: CARNEIRO, André Luis. Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida. 146 p. 2021. Monografia (Graduação em História) — Departamento de História. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2021.]
Links para os outros capítulos:
[Capítulo 1: Colocando o pingo nos ismos]
[Capítulo 2: Vandrés e Vanguardas: O Estado da MPB (1930–1967)]
[Capítulo 3: Violência, Viola, Violeiro: O Surgimento Da Tropicália]
[Capítulo 4: A Rota do Ano Luz: Análise das Músicas]
[Capítulo 5 — Dos Braços De 2000 Mil Anos: Considerações Finais]
Notas:
(1) DUARTE, Pedro. Tropicália ou Panis et Circensis — 1° ed. — Rio de Janeiro: Cobogó, 2018 p.13
(2) ADORNO, Theodor. Idéias para a sociologia da música In. Textos Escolhidos / Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas; traduções de José Lino Grünnwald … [et al.]. — 2. Ed. — São Paulo: Abril Cultura, 1983 p. 261