[NOTAS SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL pt. 1] Crítica à apologia da Indústria Fonográfica
[nota introdutória: este texto faz parte de uma série de ensaios curtos sobre a questão da propriedade intelectual. link para os outros textos no fim]
2010 foi mais um ano na derrocada pela qual passava a Indústria fonográfica: a MTV Brasil estava falindo, as rádios não criavam mais tendência — na verdade, corriam atrás — e os novos nomes da música (ex: Arctic Monkeys, Cansei de Ser Sexy, etc..) começavam a se fazer valer mais da viralidade da internet do que das ondas de rádio e TV. Nesse ano Ticiano Ricardo Paludo, formado em comunicação social pela PUC-RS, lançou um artigo intitulado ‘Walter Benjamin remixado: a aura musical na era da cibercultura e da arte atual”; onde se propõe a articular a aura musical, a indústria fonográfica e a problematização que emergia com o fator digital. Em um texto confuso e por vezes contraditório, o autor consegue ser perspicaz em afirmar que nenhum indivíduo comissiona um disco para si como pode fazer com um quadro. Isso da clareza para estabelecer a produção fonográfica ao lado da cinematográfica como um processo industrial, com etapas e divisões de tarefa.
De fato, ao gravar um disco o artista performa para máquinas. Há ainda, no campo da técnica, a diferença entre gravar em conjunto ou ‘faixa-por-faixa’ (quando cada músico grava de uma vez). Isso inevitavelmente aliena o artista e o faz refém do critério das pessoas presentes no momento da produção. Fato conhecido é que dentro da Indústria Cultural, por vezes quanto maior o orçamento menor o senso crítico dos interessados. Por isso o fracasso de empreitadas recentes como Star Wars e outros filmes do gênero. Ticiano então lança um questionamento: “é o artista tão ingênuo ao ponto de permitir (…) que a aura da sua música seja aniquilada?” E ele mesmo responde: “Acredito que os verdadeiros artistas não o façam.” A maneira como é formulada a questão dá a entender que um artista tem a gerência sob o que acontece com o legado de sua obra, o que em si é uma idéia tola. Mas sua conclusão consegue levantar ainda mais questionamentos. O que é um artista verdadeiro? Ao longo do texto veremos nessa resposta o germe de uma apologia indiscriminada da indústria fonográfica.
Mais adiante o autor retoma os custos da produção de um disco e lamenta que as gravadoras tenham que se onerar com custos tão altos para “alavancar e construir uma carreira”. Em sua defesa “livre de maniqueísmos, constatamos que sim, a arte verdadeira existe mas ela é um negócio.” Claro, para evitar os maniqueísmos românticos, vamos nos atirar de cabeça nos maniqueísmos de mercado. Para Ticiano a arte verdadeira é a que existe dentro dos marcos da indústrias fonográfica. Isso se revela explicitamente quando afirma que “atingimos realmente o status de artistas quando pessoas que desconhecemos por completo começam a admirar nossa obra.” O autor, tal como um adolescente deslumbrado com os contos sobre sexo, drogas e rock n roll, confunde fama com arte. É compreensível um marqueteiro profissional fazer essa defesa da indústria, mas Ticiano vai um pouco além e tenta dourar a pílula. Seu pior momento é ao afirmar que “a construção da aura é indissociável do marketing.” Ora, então não seria o marqueteiro o verdadeiro artista? Vendas são vendas e de fato é mérito do marketing fazer circular tantas obras sem inspiração como se tem feito ultimamente. Mas a postura idealista do autor o impede de fazer esse questionamento.
Mas o verdadeiro pandemônio do texto é quando o autor tenta argumentar sobre a aura da música. Ora afirma que ela não existe, ora afirma que o seu grande ‘aqui e agora’ seria o momento da sua composição (ignorando o fato de uma música está em constante composição até a forma final do fonograma), e por fim parece pacificar a questão repousando a aura sob a mídia física de um álbum. Ticiano parece querer desmistificar a música mais acaba por mistificar a mídia; é quase um fetiche da mercadoria no seu sentido mais vulgar. Sua defesa do álbum como “personificação da aura” é meramente a defesa de tudo de supérfluo que o marketing desenvolveu ao longo do século XX apenas para aumentar as vendas. Arte da capa, encarte, letras, fotos, material extra; tudo isso é periférico à uma mídia como a música. Defendo que a aura da música está presente no ato da audição e ela se renova a cada vez que é reproduzida; seja para reforçar a aura atual, seja para construir uma nova aura mediante um novo momento ou contexto em que se escuta. Isso se relaciona diretamente com o apontamento feito por Walter Benjamin sobre a forma como a reprodução afeta a percepção.

No entanto o autor é mais uma vez pertinente — ainda que ocorrendo em contradição — ao expor a estupidez das campanhas antipirataria que a Indústria fonográfica promovia até recentemente. Ticiano confirma a inexistência de um ‘original’ se tratando da produção fonográfica; afinal todo álbum comercializado é a cópia de uma versão registrada seja em fita, em bits ou em um tubo de cera. Porém a contradição do autor se revela na insistência em transferir essa ‘aura’ inexistente para o álbum afim de fazer sua apologia do marketing. Escutar um álbum hoje é como ler um livro. É oportuno, ao fazê-lo, coletar o contexto histórico e pessoal investido na obra. No entanto o formato tem pouco ou nada a ver com isso. Tal como um livro de papel ou um Kindle, o formato que carrega a mídia pode até ter seu próprio contexto histórico mas a obra em si é pouco alterada. Um livro ainda possui uma justificativa para inserir no mercado novas edições mediante novas informações, correções, novos prefácios etc. Um álbum, seja ele em fita, vinil, cd ou mp3 não trazem novidades relevantes para a informação ali registrada. Ainda que o charme de ouvir Chega de Saudade em uma bolacha de época seja inquestionável, é uma preferência supérflua. Outro fator levantado por Ticiano em defesa da forma-álbum é a conexão das músicas com sua ordem original e seu contexto. Ele não está errado, mas sua apologia não deixa espaço para que, novamente, outras formas de percepção sejam levadas em conta. Enquanto o álbum, na melhor das hipóteses, permite o acesso “canônico” à um momento específico de um artista, uma playlist permite um contexto geral da carreira desse artista ou uma conexão inesperada com outros artistas em diversos momentos de suas carreiras.

Sua última apologia revela um saudosismo que até então era mera suspeita. Se por um lado as técnicas de reprodutibilidade cibernéticas não mataram os tubarões e a indústria, por outro elas hoje chegaram às mãos de uma nova geração de artistas que transmitem seus trabalhos livremente na internet. A estética lo-fi é feita (na maioria das vezes) em softwares piratas e distribuídas livremente. Não que seus criadores não tenham pretensões de carreira comercial — é impossível afirmar sim ou não dada a multiplicidade de artistas. Mas ao valerem-se de seu tempo livre projetaram no mundo real as percepções sonoras que ecoavam antes apenas dentro de suas cabeças. E ao o fazerem, inspiraram outros a seguir o mesmo caminho. E essa é a definição de arte para quem não esta se pretendendo à fazer uma apologia da Indústria. Recursos econômicos que permitem tempo livre, acesso à tecnologia, acesso à informação, acesso à inspiração — esses e mais alguns outros elementos pormenores é o que permitem a emergência de artistas verdadeiros. Na sociedade em que o autor se acomoda, tempo livre se tornou privilégio de quem não precisa vender sua força de trabalho. Mudar isso é o primeiro passo para que a humanidade seja livre para criar sua verdadeira arte.
NOTAS:
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