[NOTAS SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL pt. 3] Teoria crítica da produção fonográfica capitalista

André Luis Carneiro
10 min readDec 15, 2022

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[nota introdutória: este texto faz parte de uma série de ensaios curtos sobre a questão da propriedade intelectual. link para os outros textos no fim]

A indústria cultural se distingue de outras por um fator: sua mercadoria é amorfa. Para efeitos de contraste e comparação, tomemos uma fábrica de parafusos e a indústria fonográfica. Um industrial do ramo dos parafusos possui uma forma padrão de mercadoria na qual irá investir. Já o capitalista cultural do ramo fonográfico irá produzir “música”. O tipo de música não está necessariamente determinado no ato de se investir em uma empresa desta natureza. E mesmo que esteja; ninguém escuta uma única música, e nenhuma música é igual a outra, por mais parecida que seja. Já sob influência do Taylorismo e do Toyotismo, a indústria cultural não busca reproduzir em massa um único produto mas uma variedade de produtos parecidos. Mas veremos isso posteriormente. O importante agora é entender que, do ponto de vista de um investimento capitalista, existe mais do que a necessidade da compra de capital constante e capital variável a fim de produzir uma mercadoria de mais-valor.

Pois a música é a arte do hit et nunc. Música é a escultura do silêncio. Música é ar se movendo em uma determinada frequência. É produto da performance de uma canção idealizada. Na produção fonográfica, uma das tarefas do capital variável nessa linha de produção é capturar a música. Mas o início desse processo depende do trabalho criativo e idealista que formule uma ideia-canção. No estúdio, a performance incorpora essa ideia-canção. A mão de obra (capital variável) registra, manipula e reproduz essa performance por meio dos softwares e hardwares (capital constante). Ou seja: a música é composta, performada em estúdio; gravada e mixada por profissionais que operam máquinas, e reproduzida no mercado. A ideia-canção e a performance — inicio fundamental de todo este processo — dependem da genialidade artística de um grupo de indivíduos. E os capitalistas culturais precisam negociar com esse grupo de indivíduos a compra da sua genialidade. Afinal, é esta genialidade, somada ao trabalho despendido na produção, que vão gerar o mais-valor que o capitalista busca. Dentro da necessidade de capital variável, o capitalista cultural precisa buscar o que chamo por hora de ‘capital criativo’.

Vamos interromper aqui e retornaremos essa ilustração simplificada da linha de produção fonográfica mais à frente Agora se faz necessário refletir a relação entre mercadoria e mercado. Sendo a música uma obra idealizada, ela está mais sujeita às ditas “tendências de mercado”. Mudanças sazonais são inerentes a qualquer mercado desde os tempos feudais. Mesmo a genialidade da arte se mede muito pela forma como ela se relaciona com seu tempo; seja em prol da sua exaltação ou da sua transformação. E como cultura é algo fluido e transitório, claro que com o passar do tempo gostos e opiniões também se transformam e também transformam a produção artística. É um processo dialético natural e saudável. É natural que um artista não faça, aos 70, o mesmo tipo de música que fazia aos 20. É natural que o gosto do público mude de uma tendência para outra. É natural que os filhos rejeitem o gosto cultural dos pais durante a adolescência, e o redescubram em algum momento da vida. E portanto é natural que o mercado se organize de acordo com o gosto do freguês.

Porém a interseção entre quem organiza a produção, quem organiza o mercado fonográfico e quem detém o poder econômico na sociedade capitalista é fundamental para entender essa organização. Organizar o mercado fonográfico implica em também organizar suas leis. Os meios de reprodução cultural, que um dia gravitaram em torno das distribuidoras, das rádios e de grandes lojas varejistas do ramo, hoje se pulverizaram por meio de plataformas de streaming. Estes serviços de distribuição — eles próprios produzidos sob uma orientação capitalista — aparentam dar total liberdade ao ouvinte em escolher o que ouvir. A sensação de que qualquer música está ao seu alcance imediato é de fato maravilhosa. No entanto, nem todas as músicas estão assim tão à mão.

Em primeiro lugar, observando com mais atenção veremos que nem todas as músicas estão disponíveis. Isso inclui jóias da cultura popular brasileira como o disco Tropicália: ou Panis et Circenses. Ou o primeiro samba gravado da História — Pelo Telefone, do Mestre Donga — que não está disponível em streamings oficiais. Mesmo bandas famosas, como o Planet Hemp, estiveram muito tempo fora do streaming por disputas jurídicas em torno de samples e outros recursos criativos que esbarram na lei. O que nos leva ao segundo ponto: os meios de distribuição convencionais não permitem nenhuma produção musical que infrinja as leis de propriedade intelectual e direitos autorais. Não pretendo, agora, questionar a legitimidade dessas leis. Mas me permito lançar algumas questões quanto a sua pouca flexibilidade.

Pois elas limitam uma gama gigantesca de artistas de altíssima qualidade que utilizam samples e softwares piratas; ou mesmo de pessoas dedicadas a preservar o acervo da nossa História cultural. Estas pessoas são criminosos perante a lei burguesa. Seu crime foi ter contrabandeado arte e memória por meio de plataformas mais permissivas como YouTube. Por fim, estes aplicativos estão estruturados sob algoritmos que, por mais underground que alguém possa ser, tendem a orientar o ouvinte para o que já é do “gosto popular”. De modo que artistas novos e independentes representam um fardo para estas plataformas, pois a soma do valor de troca não realizado por essas mercadorias representa mais-valor potencial perdido. Isso significa que artistas “não lucrativos” estão inutilizando um espaço que poderia ser dedicado para artistas lucrativos. Plataformas como o Soundcloud hoje limitam a quantidade de músicas que um artista pode oferecer no site sem pagar nada por isso.

Porém esta é somente uma ponta destes meios de reprodução. Os meios de comunicação em massa, isto é, os grandes portais de notícias, canais de digitais e de televisão são plenamente capazes de formular tendências e gostos. Campanhas de massificação cultural não são novidade, mas também não são tão antigas. A cultura popular sempre foi, em maior ou menor grau, espontânea. Ao contrário da Capela Sistina, ninguém encomendou a fábula do Saci, nenhum mecenas pagou pelas cantigas dos Escravos de Jó. A cultura massificada, no entanto, se propõe a produzir em escala industrial algo que seja popular. Neste cenário há duas alternativas: 1) negociar com a genialidade dos artistas populares. 2) formular as tendências. Mas neste cenário, o dono da fábrica também é o dono da loja, e portanto, dono da vitrine. Quem investe na produção das músicas também investe nos meios por onde elas são reproduzidas. O público está exposto à escolhas determinadas de forma privada. E portanto, seus gostos estarão limitados pela decisão individual orientada para a produção de mais-valor. E o modelo de investimento mais garantido prevê essa dominação totalitária da oferta e da demanda. A criação de tendências artificiais, com o passar dos anos, se torna mais nociva para a cultura popular pois tal como agrotóxicos, eles comprometem não só o produto imediato mas o solo de onde outros produtos virão.

Voltemos agora para nossa ilustração simplificada da linha de produção fonográfica. Interrompemos no ponto em que o capitalista precisa comprar o capital criativo para compor o capital variável, produzir mais-valor e vender sua mercadoria. Este capital criativo é responsável por conceber e performar a “ideia-canção”, enquanto o capital variável é responsável pelo registro desta performance e sua transformação em mercadoria. Portanto, o que chamo de capital criativo, é o responsável por iniciar todo o processo de produção. Curiosamente são eles também que, na ponta final da distribuição, recebem toda a atenção do público que naturalmente os reconhece como os artistas responsáveis por aquele produto. Naturalmente estes artistas se encontram em um papel de responsabilidade. São representantes públicos da cultura de uma nação. E quanto mais fama, mais empoderados se sentem para barganhar sua genialidade com o capitalista. Mas neste processo, não passarão nunca de mercadorias compradas para produzir mais-valor. E portanto, são tão alienáveis quanto qualquer outro capital variável.

Essa é a tendência atual: a ideia-canção, que antes dependia da genialidade de um grupo de indivíduos, agora pode ser realizada por meio de uma reorganização do capital variável. Ou seja: a tarefa de compor uma letra pode ser dada para uma pessoa, a melodia para uma segunda, a harmonia para uma terceira e a performance para uma quarta pessoa. E sua execução não precisa ser perfeita, pois um quinto trabalhador dará o tratamento necessário por meio de softwares. E com facilidade essas peças integram o capital variável ao passo que desintegram o capital criativo. E aqui está o motivo desta analise se centrar na produção fonográfica. Essa desintegração do capital criativo não ocorre com tanta facilidade em outras produções da indústria cultural. No cinema, por exemplo, uma divisão social do trabalho já está dada enquanto necessidade devido ao tamanho de uma produção desta natureza. Para rodar um filme, o padrão industrial requer uma equipe que facilmente supera 100 pessoas. Ainda que nem todo trabalho ali seja necessário para realizar o produto, nenhum indivíduo pode realizar todas as etapas dentro do tempo socialmente necessário para a produção de um filme. Portanto, é natural que exista uma divisão entre quem precisa pegar peso e quem precisa pensar sobre a luz.

Porém na música, apenas um indivíduo pode realizar todas as etapas até a produção. Portanto, a divisão social deste trabalho, tampouco sua subdivisão entre capital variável e capital criativo, não é uma necessidade inerente. O espaço midiático dado no século XX a artistas com propostas ousadas e transformadoras foi uma necessidade histórica na transição da cultura popular para a cultura de massa. A necessidade de produzir em quantidade requer, naturalmente, uma divisão de tarefas. Posteriormente, as novas etapas da cultura massificada fizeram necessário a alienação da genialidade criativa da produção fonográfica. No Brasil, por exemplo, este foi um processo histórico que esteve intimamente ligado à repressão cultural da ditadura militar. Mas trataremos disso em outra ocasião; me limito a dizer que este entendimento nos dá perspectiva para entender a cultura popular que nos foi roubada durante a ditadura. Por hora interessa entender como e porque se aliena a genialidade artística da produção fonográfica industrial. Boa parte da explicação reside na fraqueza individual da genialidade artística. Em primeiro lugar, é de interesse de qualquer capitalista poder expandir seus investimentos a fim de produzir mais-valor.

Portanto, se sob sua batuta industrial, ele pode organizar uma linha de produção musical adaptável às mudanças de tendência, ele o fará. Isso significa que um compositor pode produzir uma sequência harmônica que sirva tanto para o cantor A quanto para o cantor B. Ou, um letrista pode escrever uma canção sobre amor que sirva para o funk ou para o sertanejo. A forma estética final não importa, o importante é ter esse material à disposição do que for mais lucrativo no momento do investimento. Não é interessante para o capitalista que um grande letrista esteja “desperdiçando tempo” em busca de uma carreira para si quando poderia estar compondo para 20 outros cantores. Assim como não é interessante que um cantor bonito e simpático esteja preocupado com sua concepção artística ao invés de estar na mídia falando o que o povo quer ouvir. Tempo é dinheiro e incertezas não são de interesse do capital.

Para garantir o mais-valor do investimento, o capitalista vai buscar o controle total da oferta e da demanda. É um processo que curiosamente não parece chamar a atenção dos teóricos do totalitarismo. De posse dos meios de produção e difusão cultural, e com as leis de propriedade intelectual e direitos autorais ao seu lado, os capitalistas podem agir enquanto classe dominante. E como as ideias dominantes de um tempo são as ideias da classe dominante, o capital cria a tendência. Sem uma organização da classe oposta, ou seja, da classe proletária-artística, os capitalistas culturais podem atacar as frágeis individualidades por meio do processo de massificação já tão bem descrito por Adorno, Horkheimer e Marcuse. E essas individualidades são atacadas por meio dessas tendências que não consideram a genialidade artística. O efeito deletério desse processo é que a cultura musical se padroniza e com o passar do tempo a queda de qualidade é inegável.

É um sintoma percebido até por apologistas da indústria cultural como Steven Johnson e seu livro ‘Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornaram mais inteligentes’. Mesmo Johnson notou que a música pop se tornou mais e mais padronizada com o passar do séc. XX. Quanto aos artistas? Estes se submetem enquanto reserva industrial à espera divina, ao dia da redenção em que serão notados pelos deuses da indústria. Alguns mais idealistas acreditam que podem “mudar o sistema por dentro”. Mas num geral essa postura fica apenas no discurso, dado o clima de selvageria egocêntrica das “cenas culturais” dos dias de hoje. Todos em busca de um lugarzinho ao sol; não lhes ocorre a possibilidade de explodir o telhado.

Além do mais, a experiência histórica da Tropicália mostra que, sem uma transformação social radical, a produção fonográfica capitalista tende à absorção ou rejeição de uma vanguarda. Mas de forma alguma as estruturas serão transformadas. Portanto se a sentença divina da indústria cultural for a rejeição, ao artista só resta a margem, a periferia cultural. É por onde passam os maiores artistas brasileiros. Cartola e Tom Zé estiveram anos nas sombras da indústria; e mesmo hoje, as chances de se emocionar com um artista de rua, ou de ter uma experiência transcendental com um artista independente é infinitamente maior do que com um artista industrial. E mesmo estes artistas independentes ou de rua, caso sejam em algum momento alvo de assédio do capital fonográfico, não se encontrarão com poder de barganha para demandar resguardo criativo contra qualquer demanda do investidor. A regra é uma só: ou dá ou desce.

Aos que dão: parabéns pelo sucesso. Você está em seu direito como todo trabalhador de exercer sua força de trabalho em busca de sustento e reprodução da vida cotidiana. Esta não é uma analise moralista, é uma analise crítica que toma a realidade como ela é. Aos que descem; os vanguardistas, os críticos, os militantes, os artistas de rua, os rimadores de trem: resta se organizar enquanto cultura. Isso significa fazer circular o que se produz fora das esferas da indústria cultural. É criar o hábito de procurar por artistas ao invés de esperar pela sugestão. Procurar arte em diversos rincões. Digitais ou materiais. É fazer o mercado comum dos artistas periféricos. É incorporar o espírito de uma nação periférica e compor a imagem da superação desta sina histórica na arte.

NOTAS:

Link para outros textos sobre propriedade intelectual:

pt. 1- Crítica à apologia da Indústria Fonográfica

pt. 2 - Agradecimentos do Trabalho de Conclusão de Curso: Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida

pt. 3 - Dos Braços De 2000 Mil Anos: Considerações Finais (Capítulo final doTrabalho de Conclusão de Curso: Tropicália — Bananas ao vento: a música tropicalista como retrato de uma modernidade interrompida.

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André Luis Carneiro
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Written by André Luis Carneiro

Historiador formado pela UERJ. Mestrando da UNIRIO. Comunismo, música e futebol. andreluis.carneiro130@gmail.com

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