Morre Silvio Santos, a crítica e o bom senso
Ontem morreu Silvio Santos.
Isso você já sabe.
E provavelmente já sabe que o maldito site Twitter, como de costume, virou um campo de batalha.
De um lado, adultos infantilizados que não querem que NINGUÉM estrague seus mundos de fantasia onde seus famosos favoritos são figuras perfeitas e imaculadas.
Do outro, uma galera beirando o antissemitismo pra criticar o velho.
Se você foi testemunhou essa batalha de insanidade, especialmente se está em qualquer um desse lados, por favor, leia até o final.
A morte:
Eu nunca fui muito bom de reconhecer rostos. Quando era criança achava meu avô parecido tanto com o Leonel Brizola quanto o Silvio Santos.
Obviamente ele não se parecia com nenhum dos dois.
Mas ao mesmo tempo, ainda acho que eles se parecem em algumas coisas. Meu avô foi colocado contra à vontade num navio aos 13 anos de idade e obrigado a vir de Portugal para o Brasil. Um de seus irmãos mais velhos deveria vir, fosse pra trabalhar com um dos tios que estavam por aqui, fosse porque eles precisavam se livrar de uma boca por lá. Fato é, que aos 13 meu avô foi arrancado do seu próprio mundo pra vir à outro trabalhar em um açougue. Por lá ele trabalhou até a aposentadoria, criou dois filhos, comprou apartamento, teve netos e pagou praticamente toda a minha educação. Morreu em 2011 com um câncer no estômago.
Há uns dois anos atrás, conversando com um amigo recente da família, minha mãe contava essa história em mais detalhes. Até que ele diz:
— Nos anos 80 seu pai deve ter feito muito dinheiro, né?
Ele se referia à hiperinflação.
Minha mãe não gostou muito. Segundo ela, meu avô precisava vender carne escondido à noite pra burlar o tabelamento do Sarney. Para ele, trabalhar como um criminoso era humilhante.
Mas então nosso amigo estava certo?
Sim, ele tava certo.
Meu avô não ficou milionário — longe disso. Todavia, nos garantiu uma vida confortável com o dinheiro que ganhou naquele momento terrível da nossa história econômica.
Admitir suas contradições não reduz 1% do amor que eu sinto por ele.
Mas porque é tão difícil para os demais fazerem o mesmo com alguém que nem parente deles é?
Silvio Santos:
Silvio Santos não foi apenas um extraordinário comunicador, mas também um grande especulador imobiliário, fundador de um banco com fraude estimada em R$ 4,3 bilhões nas costas, exímio reacionário e acima de tudo um ótimo puxa saco de ditador.
O mesmo cara que caiu no tanque d’água ao vivo foi o cara que trouxe de volta a “Semana do Presidente” durante o governo Bolsonaro.
O mesmo cara que criou os bordões mais clássicos da TV brasileira (“Quem quer dinheiro?”) lançava de volta aos pobres as notas que tirava deles por meio do Baú da Felicidade, Jequiti e outros empreendimentos.
O mesmo cara que inventou todas as qualidades dos apresentadores de TV no Brasil foi o cara que escolheu, próximo ao fim da vida, fazer do seu personagem um velho reacionário que pergunta à crianças se elas preferem sexo, dinheiro ou poder.
O mesmo cara que abriu espaço para tantos artistas, deu oportunidade e emprego para tanta gente boa como Serginho Groisman, Marília Gabriela, que deu ao Brasil a oportunidade de ter a versão entrevistador do Jô Soares, foi o cara que ameaçou mover a cracolândia para a porta do Teatro Oficina por conta da disputa imobiliária do Parque do Rio Bixiga.
Eu estive exposto à influência do Silvio Santos tanto quanto qualquer outro. Aos 10 ganhei um concurso de desenho na escola e o prêmio foi um CD-ROM do Show do Milhão. Foi a alegria da família nos fins de semana por um bom tempo. Eu faço parte do tal “povão” que por 6 décadas, de uma forma ou de outra, se relacionou com a figura de Silvio Santos.
E ainda assim, estou ciente de todas as merdas que ele fez.
Ele foi todas essas coisas e mais um pouco.
Qual justificativa, que não seja religiosa, há de nos fazer ignorar esses fatos agora? Breno Altman fala em ofensa “a memória afetiva de nossa gente”, categorizando quem fez questão de lembrar do “lado b” do apresentador como elitista.
Ele e tantos outros.
Mas ninguém consegue explicar o que há de elitismo nisso.
Apelam logo para a figura do “povão”, essa amalgama de braços, pernas, bocas e ânus que só servem para trabalhar e aplaudir. Entre a nossa gente não pode haver quem se interesse por esses assuntos a despeito de gostar do personagem? Ou até mesmo não gostar dele? Em nome de não “ofender a memória afetiva” a gente finge que não aconteceu nada? A gente aposta no esquecimento? Eu e tantos outros não fazemos parte da nossa gente?
O argumento mais cínico é o de que isso “afasta o ‘povão’ (de novo ele), da esquerda”. O que é curioso, pois as críticas a Silvio Santos são, em sua maioria, justamente por aquele que ele fez contra os interesses populares e nacionais. E de que esquerda e de que povo eles estão falando? Esses “conselhos” todos soam como alguém que fala aparte do povo e aparte da esquerda. Então qual a relevância dessa opinião?
Além do mais, nem tudo que se diz é militância política ou disputa de eleitorado. As pessoas tem direito às suas opiniões independente do concurso de bom-mocismo que existe na cabeça de alguns tuiteiros. Eu tenho certeza que não estaria tão investido nesse assunto se meu campo de pesquisa não fosse a cultura popular. Devo então maquiar tudo que eu estudei, tudo que aprendi, tudo que escrevi, para não “ofender a memória” da relação parassocial que as pessoas criam?
Convém questionar.
A Crítica
Entendo que a diferença entre cultura popular e cultura pop é que a primeira é feita pelo povo e a segunda feita para as massas. Em outras palavras: a cultura popular é cultura produzida pelo povo entre si e para si, ao passo que a cultura pop é são os produtos da indústria cultura feitos para o consumo em massa. Esta diferença não informa em absolutamente nada sobre as qualidades da cultura, apenas seus propósitos e suas origens.
Nenhuma figura foi tão pop quanto Silvio Santos.
Mas ele não era cultura popular. As imitações dele são cultura popular.
Mas parece não existir mais interesse na cultura popular, só na cultura pop.
Alguns produtores de conteúdo que ensaiam o papel de crítico sabem diferenciar bons produtos pop do resto, por exemplo os caras d’O Brasil Que Deu Certo. Já outros optam por tratar tudo na galhofa como Chico Barney. E há também aqueles que odeiam tudo e investem no papel do hater, como Régis Tadeu, que poderia ser um excelente crítico não fosse o personagem que criou para si.
O que parece ter desaparecido é o espaço pra crítica ponderada. E não estou me referindo à crítica acadêmica, intelectual ou militante. Críticos de talento e sensibilidade como Maurício Stycer e André Barcinski se encontram virtualmente exílados em colunas de jornal e canais de youtube. O encontro dos dois na live do canal do Barcinski foi o melhor momento deste sábado 17 de agosto de 2024.
Há nesse nicho de criadores de conteúdo sobre cultura pop, que vai muito além desses dois exemplos, uma apologia da cultura pop, cínica e um tanto condescendente, que afirma que “o povão gosta de baixaria” ou, “o povão não vai entender isso”. Essa apologia retroalimenta a relação entre os criadores de conteúdo e seu público, onde um valida a opinião do outro. Aqueles que ousam discordar, por um lado, perdem público, por outro, são excluídos dos nichos.
E sendo justo, essa é a regra do jogo. Com qualquer criador de conteúdo, sobre qualquer assunto, em qualquer plataforma digital. Por isso não quero personalizar nos caras do OBQDC ou no Chico Barney, mas esses são as referências que eu mesmo consumo (ainda que discordando).
Mas Barney é talvez a figura mais bem acabada desse fenômeno de apologia da indústria cultural. Ele claramente é um sujeito carismático, que conhece bastante sobre o assunto que aborda e que tem um senso de humor que torna seus textos e vídeos altamente agradáveis de se assistir. Maspara mim, sua melhor qualidade é seu cinismo. Em nenhum momento fica claro se ele despreza ou genuinamente aprecia os produtos culturais sobre o qual discorre. E o mais fascinante de tudo isso é que ele é pago (e espero que seja bem pago) por isso.
Contudo, o que chama atenção é a efetividade dessa posição cínica em criar uma defesa da indústria cultural. Os defensores do “povão” tampouco deixam claro se eles mesmo gostam do que defendem ou apenas estão falando em defesa do “povão” que “gosta dessas coisas mesmo”.
Chamo isso de chicobarneysismo cultural: a defesa enérgica do que há de medíocre em prol de um rebaixamento da cultural ao nível do que eles ACHAM que o povo está.
Eu realmente não sei do que o povo gosta ou entende. É muita gente. Nunca achei que soubesse e não imagino que um dia saberei. Também não sei de onde as pessoas tiram tanta certeza. Suspeito que quem afirma “o que o povo gosta” na verdade está defendendo aquilo que ele ou ela gostam. E nessa autodefesa esquizo-cínica, vamos todos descendo em espiral e nos nivelando por baixo.
Há algumas semanas os fãs de Marvel estavam defendendo os méritos artísticos de Deadpool & Wolverine (2024). O que foi particularmente ridículo é que dias antes do lançamento, esses mesmos fãs diziam que “quem quiser vá ver seu filme iraniano mudo em preto e branco sobre uma mula” ou algum absurdo do tipo.
“Existem outros filmes, por favor, veja-os”, foi a resposta que encerrou esse debate.
Quanto à Silvio Santos eu digo:
Existem outros fatos, por favor, aceite-os!
Nenhum deles diminui o tamanho e a importância de Silvio Santos na televisão brasileira. Mas compreende-los não fazem mal, pelo contrário. Enriquece seu conhecimento sobre a história do Brasil.
Além do mais, ele está morto e a família dele é bilionária. Que mal eu ou alguém pode fazer? Ninguém quer acabar com sua felicidade. Ninguém quer “estragar sua infância”.
Mas convém crescer.
O bom senso
E não quero deixar passar batido um outra sandice que só serviu para poluir e distorcer ainda mais a conversa. Aqueles que negam que Silvio Santos tenha sido camelô.
Por um lado, a mídia (especialmente a Globo) tem explorado essa história para entrevistar comerciantes populares nas ruas do Brasil e extrair deles depoimentos sobre perseverança e meritocracia. Baixo. Rasteiro. Canalha.
Por outro, há quem tenha certeza que esta história é falsa.
Esse argumento foi (até onde sei) popularizado pelo polemista, vendedor de curso e criador de conteúdo Sra. Bira, que, não obstante, jamais conseguiu comprovar qual seria a versão verdadeira. Recorrem então ao sobrenome Abravanel como prova de que tudo é uma farsa.
Desnecessário dizer que esse “argumento” logo atraiu antissemitas e nazistas como merda atrai mosca.
O que contava o próprio empresário era que dos 14 aos 18 ele circulou entre o posto de camelô, paraquedista do exército e locutor de rádio.
Parece desnecessário, mas talvez tenha que ser dito.
Ser camelô em 1944 era bastante diferente de ser camelô em 2024. Ou, para ser mais específico, vender capinha pra documentos na Avenida Rio Branco em 1944 era muito diferente de vender muamba na Rua Uruguiana em 2024.
Na excelente biografia escrita pelo já citado Maurício Stycer, não fica claro se de fato Silvio Santos foi ou não camelô. Diria-se que o resultado da análise foi “inconclusivo”.
Contudo, querer contrapor a “versão oficial” com argumentos de que “não existem camelôs com sobrenome Abravanel” ou “só quem era rico tem foto naquela época” é o tipo de argumento que só existe nesse lugar maldito chamado tuiter.
Só serve para distorcer e criar ruído numa conversa que já é bastante difícil entre a memória e o afeto de uma figura pop e a realidade dos fatos que marcaram sua biografia.
Convém bom senso, se esse, infelizmente, não tivesse morrido também.