E agora? dúvidas sobre a crise climática

André Luis Carneiro
9 min readSep 8, 2024

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O texto a seguir foi escrito como um ensaio final de uma disciplina ministrada pelo professor Rodrigo Turin do PPGH/UNIRIO sobre historiografia, antropoceno e crise climática. Devo admitir que dos 30 anos da minha existência, com exceção de algumas atividades extra-curriculares no ensino fundamental, dediquei muito pouco desse tempo à questão climática. Coincidentemente (ou não), foi justamente no passado ano de 2023 em que houve esse encontro entre a disciplina cursada e as sucessivas ondas de calor extremo no Brasil que tornaram palpável a sensação de que estamos diante de uma crise climática. Contudo, dado o acúmulo do problema e o tempo da minha ignorância, mesmo depois de meses de excelentes debates, tenho mais dúvidas e agonias do que propostas ou críticas. Neste breve texto tentarei sintetizá-las em 4 questões e, com base em textos e notícias recentes, refletir sobre as questões internas que cada uma dessas dúvidas carrega. E a primeira dúvida não poderia ser outra senão:

1) Ainda temos tempo para agir?

Há algo que possa ser feito ou já atingimos o ponto-de-não-retorno? Se há algo que pode ser feito para superar essa crise, quanto tempo temos para descobrir como? Por outro lado, se não há nada que possa ser feito, como evitar a barbárie? Há ainda uma outra pergunta: temos noção do tamanho do problema? Quando nos deparamos com manchetes como Quais são os novos modismos do ‘Rio 60ºC’ para o verão” (O Globo, 17/12/2023), temo que a resposta seja negativa [nota: o jornal O Globo alterou a manchete após críticas, mas casos semelhantes podem ser facilmente encontrados] . Parece haver um consenso de que há tempo para agir, mas que este seria cada vez menor. Há algumas condicionais (como zerar as emissões de carbono e/ou desmatamento) e alguns prazos (até 2050, 2060), mas todos parecem estar fadados ao fracasso com variações nas suas consequências (aumento do nível do mar, desertificação dos biomas tropicais, etc.). Entendo que a tomada de decisões efetivas depende de uma compreensão igualmente efetiva da crise. Quando Joel Wainwright e Geoff Mann colocam quatro formulações em “Climate Leviathan” [1] como “possibilidades”, acredito que há uma sobreposição do ideal sobre o real. Quero dizer, os autores parecem partir dos modelos por eles propostos para então buscar correspondência na realidade. Temo que importe menos quais dos quatro modelos seriam “adequados” para a acomodação dos nossos valores civilizatórios, democráticos etc., e mais quais dessas possibilidades ainda serão viáveis frente o tamanho real da crise. Acredito que estas sejam questões fundamentais para lidarmos com o problema de forma concreta. O que nos leva a próxima dúvida.

2) O que fazer?

Supondo que há algo que pode ser feito, o que seria? Esforços individuais são necessários e sempre bem-vindos, mas sabemos que são insuficientes. A lógica de mercado parece inclinada a esta solução, mas considerando que a burguesia sabe que o fracasso e a consequente barbárie é onde os mais fortes economicamente prevalecem, como confiar em suas decisões? A Nestlé não consegue eliminar o trabalho escravo da sua cadeia produtiva de chocolate (Reuters, 28/06/2022), e mesmo assim projeta a imagem de empresa social e ecologicamente consciente, como confiar em outras soluções como o dito “crédito de carbono”, transição energética, “economia verde” etc.? A imprensa hegemônica, como visto no exemplo d’O Globo, parece mais preocupada em individualizar a responsabilidade, fingir algum interesse na conscientização do problema, mas no fim das contas é apenas um veículo ideológico de uma classe que tem como “pára-quedas” a sua própria força política e econômica. Os Estados nacionais, dirigidos em sua maioria por essas mesmas burguesias, são capazes de encontrar saídas para a crise? Ou vão operar apenas na repressão da classe trabalhadora que se vê acossada pelos efeitos diários das mudanças climáticas? Um olhar crítico às soluções que preservem a sociedade burguesa moderna, dita liberal-democrática, essencialmente capitalista, inevitavelmente levam ao ponto de desconfiança de que os politicamente responsáveis (e economicamente fortes) estejam “empurrando com a barriga”, rifando as vidas da classe trabalhadora na certeza de que seu estilo de vida estará seguro, não importa o que acontecer.

A nova moda do verão é sofrer

3) Há alguma alternativa à sociedade burguesa moderna?

Partido do pressuposto sintetizado por Antonio Cândido (Brasil de Fato, 13/07/2011), de que “as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis”, há como reverter todo o acúmulo da modernidade industrial capitalista? Alguns apontam para a sabedoria intrinsecamente ecológica de povos nativos que por séculos viveram em aparente harmonia com seu ambiente (Ferdinand, 2022 [2]). Mas nós, nascidos e criados dentro da sociedade capitalista moderna, saberíamos encontrar esse “caminho de casa”? Há 8 bilhões de pessoas no mundo, dentre as quais certamente ⅔ não experimentam e gostariam de acessar os padrões de vida e de consumo moderno. Como presumir um retrocesso nessa tendência global? O caminho não seria por meio da própria barbárie? Os autores do “Manifesto ecomodernista” [3] apontam para um caminho diferente:

Na verdade, as populações humanas de outrora, dotadas de um aparato tecnológico menos avançado, possuíam, de longe, uma pegada ecológica de espaço muito maior do que as sociedades atuais conhecidas. Considere-se que uma população de não mais que um ou dois milhões de norte-americanos [nativos] caçou a maioria dos mamíferos de grande porte do continente levando-os à extinção no Pleistoceno tardio. Ao mesmo tempo, durante este processo queimavam e derrubavam florestas por todo o continente. Extensas transformações humanas do ambiente continuaram durante todo o período Holoceno. Sabe-se que tanto quanto três quartos de todo o desmatamento global ocorreu antes da Revolução Industrial. As tecnologias que os ancestrais da humanidade utilizavam para atender suas necessidades, apoiadas em padrões de vida muito menos exigentes, implicam em impactos per capita mais incisivos para o ambiente. (Manifesto ecomodernista, 2018, p. 12)

Os ecomodernistas assumem a modernidade pelo seu caráter tecnológico, e assim, presumem que o avanço científico seria capaz de acessar e solucionar o problema climático. Mas aqui reside a mesma dúvida da questão anterior: se foi a modernidade que nos colocou nessa situação, como confiar nela para nos tirar daqui? Além do mais, o próprio caráter de classe dessa modernidade reforça a desconfiança de que suas promessas sejam falsas. Em entrevista concedida em 1992 ao jornalista Epigmenio Ibarra da TV mexicana Imevisión, Fidel Castro teceu algumas críticas sobre os efeitos do desenvolvimento a qualquer custo:

Porque o que o capitalismo resolveu? Não resolveu nenhum problema. Saqueou o mundo, deixou toda esta pobreza, criou estilos de vida e modelos de consumo incompatíveis com a realidade. Envenenaram as águas, os mares. Quero dizer, os rios, os lagos, os mares, a atmosfera, a terra. Eles criaram os resíduos mais incríveis. E sempre cito um exemplo, imagine que todo chinês tivesse carro ou quisesse ter carro. Cada um dos um bilhão e cem milhões de chineses. Ou que cada um dos 1,1 bilhão de chineses. Ou que cada um dos índios, que são cerca de 800 milhões, gostaria de ter um carro e esse método, esse estilo de vida. E que África faça o mesmo. E que quase 450 milhões de latino-americanos fizeram o mesmo. Quanto tempo duraria o óleo? Quanto tempo duraria o gás? Quanto tempo durariam os recursos naturais? O que sobraria da camada de ozônio? O que sobraria do oxigênio na Terra? O que aconteceria com o dióxido de carbono? E todos estes fenómenos que estão a mudar a ecologia do mundo, estão a mudar a Terra, estão a tornar a vida no nosso planeta cada vez mais difícil. Será que o capitalismo deu ao mundo um modelo de vida, um modelo de sociedade? (Fidel Castro, 1992)

Em que pese as críticas de Fidel, o socialismo (ao menos até aquele momento) não se distinguiria do capitalismo em termos de impacto climático. O rápido desenvolvimento da União Soviética, e subsequentemente sua competição com os EUA, não só levaram o primeiro estado socialista à ruína como deixaram um prejuízo ambiental. A China segue hoje um caminho parecido onde o crescente consumismo, associado à ideia de prosperidade nacional, tornaram real as críticas de Fidel Castro. Haveria um modelo socialista para o enfrentamento da crise? O “Manifesto ecossocialista” tenta dar centralidade às questões de classe como meio e como fim para a crise climática:

A generalização da produção ecológica sob condições socialistas pode fornecer a base para a superação das crises atuais. Uma sociedade de produtores livremente associados não encerra a sua própria democratização. Ela deve insistir em libertar todos os seres humanos como seu objetivo e fundamento. Ela supera assim o impulso imperialista subjetiva e objetivamente. Ao realizar tal objetivo, essa sociedade luta para superar todas as formas de dominação, incluindo, especialmente, as de gênero e raça. Ela supera as condições que conduzem a distorções fundamentalistas e suas manifestações terroristas. Em síntese, essa sociedade coloca-se em harmonia ecológica com a natureza num grau impensável sob as condições atuais. Um resultado prático dessas tendências poderia expressar-se, por exemplo, no desaparecimento da dependência de combustíveis fósseis que caracteriza o capitalismo industrial , que, por sua vez, poderia fornecer a base material para o resgate das terras subjugadas pelo imperialismo do petróleo, ao mesmo tempo em que possibilitaria a contenção do aquecimento global e de outras aflições da crise ecológica (Löwy & Kovel, p. 4)

Porém, e isso me parece crucial para entender a baixa adesão ao ecossocialismo posto nos termos dos autores, “desenvolver a lógica de uma suficiente e necessária transformação da atual ordem e começar a dar os passos intermédios em direção a esse objetivo” (op.cit), sem dizer que passos seriam esses, me parece insuficiente dada a urgência.

4) Há algum modelo para enfrentar a crise?

Há algo que tenha sido tentado e que tenha resultado algum efeito positivo nos últimos 30 anos? Em janeiro de 2023, um relatório apresentado pela Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas, dizia que o buraco na camada de ozônio estaria fechando-se. Contudo, chegamos a dezembro com a Agência Ambiental Européia dizendo o contrário [4]. Afinal, os esforços na redução de CFC nos últimos 30 anos foram ou não o suficiente? Foram ou não um exemplo de engajamento global? Há outras práticas que possam servir de modelo? Alguns exemplos me vêm à mente, ambos em sociedades emergentes, fora do norte global, mas em sistemas econômicos e políticos distintos. No lado do capitalismo subdesenvolvido, temos o projeto de reflorestamento das encostas no Rio de Janeiro, iniciado em 1987 pelo prefeito Saturnino Braga. Hoje é possível encontrar na internet imagens do antes e depois desse projeto. O mesmo vale para a despoluição do ar em Pequim para os Jogos Olímpicos de 2008. As imagens dão conta de algo até então inimaginável. Cuba está experimentando com o modelo agroflorestal desde a pandemia (Granma, 2020).

Há ainda o exemplo da Burkina Faso, onde a ameaça de desertificação já se verificava em 1973. 10 anos passados, e uma revolução socialista depois, o país encontrava-se em envolto por diferentes formas de mobilização social que combinavam o desenvolvimento social com a proteção ambiental. Em discurso proferido na 1º Conferência pela Proteção da Árvore e da Floresta, em 5 de fevereiro de 1986 em Paris, Thomas Sankara [5] listou uma série de projetos e mudanças na cultura social do país que parecem genuinamente interessantes. Projetos sociais estavam condicionados ao plantio de árvores por parte dos beneficentes. Eventos sociais como casamentos e batizados também eram marcados por cerimônias de plantio, e os primeiros planos quinquenais previam que cada família semeasse 100 árvores por ano. Nos primeiros 15 meses, segundo Sankara, 10 milhões de árvores já haviam sido semeadas. Além de severas regulamentações e fiscalizações no comércio de madeira e outros produtos de extração. Creio que uma pesquisa mais dedicada inevitavelmente encontraria inúmeros outros exemplos. Mas qual o impacto real desses projetos na crise? É possível replicá-los globalmente? Há condições políticas para tal empreitada? E, retornando à primeira questão, há tempo suficiente para criar tais condições políticas?

Bibliografia:

  • [1] WAINWRIGHT, Joel & MANN, Geoff. Climate Leviathan. Antipode Vol. 00 №0, 2012
  • [2] FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. 1º ed. São Paulo : Editora Ubu, 2022
  • [3] Manifesto Eco Modernista. Breakthrough Institute. Oakland (EUA), 2015. Tradução de Maurício Waldman e Tadeu Alcides Marques. Série Meio Ambiente Nº. 8. São Paulo (SP): Editora Kotev. 2018.
  • [4] World Meteorological Organization (WMO). Executive Summary. Scientific Assessment of Ozone Depletion: 2022, GAW Report №278, 56 pp.; WMO: Geneva, 2022.
  • [5] SANKARA, Thomas. Discursos de Burkina Faso. 1º Edição, 2019

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Written by André Luis Carneiro

Historiador formado pela UERJ. Mestrando da UNIRIO. Comunismo, música e futebol. andreluis.carneiro130@gmail.com

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